domingo, 26 de setembro de 2010

Refrigério Sazonal

- O Refrigério está aí à porta. Protege-te! - disse-lhe a avó.
- O quê? - perguntou o Miguel, atarantado.
- O Refrigério, querido, o Refrigério. Tens de te proteger. Ainda ficas doente e depois é que não podes mesmo sair de casa.
- Mas eu não sei o que é o Refrigério. Nunca ouvi essa palavra.
- Ora essa! Como é possível? Passei anos a alertar o teu pai para o Refrigério. Ele nunca te disse para teres cuidado com a frescura do Outono?
- Ah, sim, isso sim! Não sabia que o Refri...gério era isso. Por que é que lhe chamas isso?
- Ora, porque tem muito mais piada. - disse a avó, com um pequeno brilho no olhar.
- Porquê?
- Diz-me, Miguel, tu gostas do Outono?
- Adoro! É a minha estação preferida!
- A sério? Porquê?
- Sei lá... Gosto do tempo fresco a seguir à sauna do Verão. Gosto das folhas que caem das árvores e ficam espalhadas pelo chão. E há aquele cheiro, dos dias de chuva. O cheiro a chuva, e a terra molhada, e a café queimado. Gosto disso tudo! Ah, e o vento. O barulho que faz. As árvores a abanarem. É tudo bonito! - respondeu o Miguel, com um entusiasmo crescente na voz.
- Estou a ver que gostas mesmo do Outono... - disse a avó, os seus olhos cada vez mais brilhantes. - E agora diz-me lá: achas que Refrigério não é um bom resumo de tudo o que explicaste?
O Miguel ficou pensativo. Nunca imaginara que pudesse existir uma palavra para resumir o seu sentimento em relação ao Outono. Mas a avó tinha razão, aquela era a palavra ideal para falar da frescura do Outono. Mal conseguia conter a excitação quando lhe respondeu:
- Tens razão, 'vó! Refrigério fica mesmo bem! Vou já vestir o casaco para não ficar doente por causa do Refrigério! Depois ainda tinha de ficar em casa e deixava de contemplar a sua beleza... Obrigada, 'vó! És a melhor avó do mundo!

Aos saltinhos, foi buscar o casaco ao quarto. Nas suas costas, a avó sorria. Elogios como aquele faziam-na sentir-se tão fresca como nos seus tempos de menina e moça.

domingo, 12 de setembro de 2010

Prenda de aniversário

Situações do género passam a vida a acontecer, imagino eu, mas o facto é que, desde o início, nunca gostei por aí além dos meus dentes.
Desde pequeno que me lembro de olhar para o espelho e ver duas protuberâncias demasiado afiadas no lugar dos caninos. No que respeita aos dentes em geral eles encontravam-se desalinhados, uns encavalitados, outros deixavam antever um franco progresso na sua descalcificação. Depois havia sempre aqueles dois irmãos da frente, demasiado prepotentes para a importância real que tinham. Era graças a eles que ganhei, a certa altura da minha vida, a alcunha de dentuça.
 No primeiro dia de Outubro, altura em que completei os 28 anos, olhei-me ao espelho da casa-de-banho para fazer um balanço geral da minha vida, tal como é meu apanágio em todos os aniversários.
Portanto, encontrava-me a viver num cubículo com espaço para uma cama, um frigorífico e a televisão; a trabalhar seis dias por semana, das nove às dezanove; recebia o suficiente para comer e para pagar as contas da casa, mas ainda não o bastante para iniciar um tratamento de ortodôncia; vestia-me mal e o insucesso com as mulheres persistia.
Não se pode dizer que tivesse uma má vida, mas o que me deixava seriamente deprimido eram aqueles dentes. Decidi então dar um presente a mim próprio naquele dia especial e apelar à minha criatividade.
Depois da minha reflexão saltei o passo de lavar os dentes e segui logo para o pequeno-almoço. Uma taça de cereais com muito leite, assim ficava também já almoçado. Faltei ao trabalho para me mimar um pouco no sofá a ver documentários sobre animais selvagens.
Quando o sol deixou uma mancha vermelha sobre toda a cidade fui ao frigorífico e tomei um vinho qualquer carrascão. Saí então de casa e deambulei um pouco ao som de John Coltrane, na perspectiva de ser guiado pelos carismáticos apontamentos do mestre do jazz.
Acabei por entrar no Phil's, um bar bastante popular onde se podia beber dos melhores cocktails ou ouvir uns concertos de rock.
- Queria um conhaque bem aviado, se faz favor - Pedi ao barman.
Bebi aquilo de um gole, atirei para a bancada os 3 euros, e fui para o pé de um casal que namoriscava na penumbra resguardada de um canto do estabelecimento.
- Vejam bem. Não têm casa onde fazer estas poucas vergonhas, por isso vêm para bares tocar-se e provocar os clientes! - disparei eu para o casal que ficou subitamente surpreendido.
- Sim estou a falar com vocês! desenvergonhados, obscenos! - E levantei a mão à pobre jovem, perpelexa com a minha fúria.
O namorado não esteve para meias medidas e deu-me um murro que foi direitinho ao meu estômago, deixando-me com falta de ar.
- É o melhor que sabes fazer seu merdas?
Seguiu-se um murro na cara e alguns pontapés quando já estava no chão.
Expulso do bar, fui com dificuldade para casa. Cuspi algum do sangue que se misturava com saliva para o lavatório, lavei a cara e sorri para o espelho.
Fiquei feliz com a transformação.

sábado, 11 de setembro de 2010

Dentes

Às vezes parece que nos têm de dar um murro nos dentes para acordar. Estamos tão embalados nos nossos próprios mundos que nem vemos o que se passa fora do nosso crânio. Antes de darmos conta estamos a fazer coisas que achávamos que só os outros faziam. Nós somos sempre anjos. Ou sempre demónios, porque nunca estamos à altura daquilo que "devíamos" ser.Perdemos noção do "eu" do "tu" e do "nós". Perdemos noção de muitas coisas que para nós eram importantes. E depois, paramos, olhamos para nós e não sabemos como chegámos aquele estado.
Um bom murro na dentuça. Para acabar com o drama e com a parvoíce, para sentir a realidade onde ela dói e ficar sem um dente ou dois, sentir o sabor férreo da vida. E depois pegar em nós e limpar o sangue na manga e continuar. E esperar ao menos não fazer a mesma porcaria, até ao próximo murro. 

domingo, 5 de setembro de 2010

A Família Dentuça

Os pais puseram-lhe o nome de Felizmina Dentuça, em homenagem ao irmão que morrera três meses antes. Queriam que ela fosse tão feliz quanto ele fora, que estivesse sempre tão feliz como ele estava quando morrera na praia. Desejavam, sobretudo, que o nome Felizmina lhe desse a sorte de, tal como o irmão, levar as pessoas a perguntar-se qual o porquê de lhe chamarem Dentuça.

Feliz Dentuça fora um rapaz feliz com dentes pequenos. Desde criança que a sua pequena dentuça alegrara todos à sua volta. O sorriso, mais do que o riso, era frequente e tinha o condão de aquecer qualquer coração mais triste. Era particularmente eficaz quando estava junto do pai. O pai, Infeliz Dentuça, raramente mostrava a dentuça que herdara da família. Era um verdadeiro Dentuça. Infeliz como só eles sabiam ser. Com dentes grandes como só eles sabiam ter. Nada que denunciasse o frágil coração de oiro que batia no seu tosco peito.

Naquele dia, Sortuda Dentuça ficou debaixo do chapéu-do-sol, enquanto os homens Dentuça passeavam à beira-mar. Normalmente, acontecia o oposto. Eles ficavam por ali e ela ia passear. Seis meses de gravidez tinham sido suficientes para alterar a rotina. A Dentucinha que iria nascer já pesava demasiado para passear à beira-mar. Esperava que esse peso não fosse sinal de que os seus dentes seriam como os do seu querido Infeliz.

Conheceram-se quando, ainda na escola primária, ela o defendeu dos colegas que o humilhavam devido aos seus dentes salientes. Não fora capaz de ficar a olhar, como se não fosse nada com ela. Com o tempo, tornaram-se amigos inseparáveis. Com a idade, a amizade deu lugar ao amor. Agora, formavam uma família feliz e brevemente teriam o casalinho que desejavam desde que o pequeno nascera, há já 17 anos. Ainda que implorassem por dentes pequenos, estavam sempre a postos para defender o Dentuça sénior até às últimas consequências. Só assim eram verdadeiramente felizes.

Nesse momento, apercebeu-se da agitação na praia. Viu o nadador-salvador a correr em direcção ao mar, as sirenes a perturbarem a aparente tranquilidade da praia. Sentiu um aperto no coração e um grande pontapé da sua Dentucinha. Soube instantaneamente que o casalinho já nã0 existiria. O seu Feliz, o maravilhoso Feliz, acabara de morrer. Nunca poderia deixar que o seu fantástico pai fosse humilhado por aqueles parvos, infelizmente armados. Naquele dia, o coração de oiro revestiu-se de pedra.

Felizmina Dentuça sorriu pela primeira vez. A água começou a amolecer o coração de pedra, que nunca viria a ser mais do que feito de prata dourada. Não tinham o casalinho, era certo, mas Felizmina Dentuça era uma dádiva que não podiam desperdiçar. Tal como o seu saudoso irmão, já era capaz de aquecer corações.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

'Vida maldita…’ murmurou. Altas pressões, baixas pressões, chuvas fracas, aguaceiros, sol, céu nublado ou limpo… Tudo aquilo era, ainda há uns meses, uma mera curiosidade para ajudar a escolher a roupa do dia seguinte. Agora, enquanto se sentava na cadeira para ser maquilhada, estudava as folhas com os gráficos e tabelas da meteorologia que iria apresentar daí a minutos. Repetia para si o texto enquanto olhava para os gráficos. Já conseguia perceber as variações na pressão atmosférica e o seu impacte no tempo. Pensou no pai e como este ficaria decerto mais satisfeito com uma carreira na meteorologia do que na moda. Ironia do destino, tudo o que conseguira como modelo fora aquela oportunidade de apresentar o boletim meteorológico nos últimos cinco minutos do telejornal da noite, e mesmo isso graças a uma cunha de uma amiga. Nem o facto de aparecer na televisão todas as noites parecia surtir algum tipo de impacto na sua vida, para além do desconforto quando alguém ficava especado a olhar para ela, decerto tentando perceber de onde aquela cara lhe era familiar. E o pior é que nunca fora tão feliz em toda a sua vida…

‘Vamos a isto?’, ouviu uma voz calorosa questionar fazendo-a rodar sobre a cadeira enquanto sorria para a maquilhadora. ‘Siga. Algures haverá uma modelo à espera para saber o que vestir amanhã’ respondeu de sorriso nos lábios…

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O prazer dos peixes

Para um jovem habituado a uma vida à beira mar, aquela montanha branca afigurou-se um desafio maior do que esperava.
Dava pela alcunha de Sardinha Júnior, o filho de uma família de pescadores. A pele era bronzeada, o cabelo dourado, e os músculos dos braços bem definidos. Até aos 18 anos não fez outra coisa a não ser remendar as redes de pesca, ocasionalmente rompidas ou enleadas, que o pai trazia para casa. No seu 18º aniversário, numa cerimónia dirigida pelo patriarca da casa, foi-lhe concedido um barco baptizado com o nome da sua futura esposa - Amélia -, e recebeu o aval da família para iniciar a sua carreira piscatória.
Não se podia dizer que fosse um mau pescador, todas as noites trazia pelo menos um robalo ou meia dúzia de taínhas para casa. A profissão ate lhe agradava bastante, principalmente de Verão quando o mar estava calmo e espécies migratórias juntavam-se às locais aumentando assim a apanha em alto mar. Era também nesta altura que trazia consigo a sua Amélia de carne e osso, para juntos fazerem amor até ao sol se pôr. Ali, no território dos peixes, não tinha de se preocupar com mirones ou com o barulho que faziam. Era só ele, ela e os peixes, numa harmonia e calmaria insolúveis. Os belos tempos que viriam, no entanto, a terminar.
Estes Verões acabaram e um Inverno em especial chegou.
Como era seu dever, o jovem adulto partiu de manhãzinha para mais um dia de pesca. O tempo estava cinzento daí que tivesse vindo prevenido com um corta-vento e um chapéu de plástico amarelo impermeável. Precauções ingénuas.
Por volta do meio-dia o mar ficou demasiado agitado até para para os peixes. A Amélia trairia o seu fiel navegador virando-se ao contrário e o Sardinha Júnior arriscara-se a abraçar o mar para nunca mais voltar.
Quis o destino que ele conseguisse agarrar-se a um pedaço de madeira para assim navegar ao rumo da  maré durante dois dias.
Acabou por dar com terra firme. Encontrou salva e comeu raízes de árvores, uma dádiva generosa da natureza que lhe permitiu aliviar a fome.
Não havia forma de voltar atrás e encarar aquele mar traiçoeiro mais uma vez. Tinha de continuar em frente! O que o esperava eram uns quilómetros de mato que precediam uma enorme montanha. Ele sabia que a tinha de escalar para tentar chegar a uma eventual povoação que pudesse estar do outro lado.
Escalou durante uma semana, apoiado pelas propriedades medicamentosas da salva junta com a carga nutritiva das raízes das árvores que havia guardado.
O que o viria trair fora a pressão atmosférica que certamente rebentaria com a escala de qualquer barógrafo.
Para um rapaz habituado a viver ao nível da água, subir aquele território de nenhures representava uma conquista que nenhum homem ou animal devia ser permitido alcançar.
Foi ali que compreendeu o que é ser-se asmático. A cada passo que dava respirava com mais dificuldade. Uma inspiração normal lá em baixo era o equivalente a três ou quatro ali em cima para manter os níveis de oxigénio normais.
Eventualmente acabou por desmaiar perto do cume, quando a pressão atmosférica desceu para níveis surreais. Não o fez, porém, sem antes pensar no Verão que chegaria dali a uns belos meses, e nos momentos de prazer de que já tinha saudades.