domingo, 17 de junho de 2012

Pontos Com Nó

Há horas que tentava, sem sucesso, desfazer o novelo. Quando descobria uma ponta, bem que tentava prendê-la, mas ela teimava em escapar-se, quase a fazer lembrar os grãos de areia que se escapam entre os dedos. Estava cansada. Cansada e farta de não conseguir descortinar os pedaços que, tão pacientemente, marcara com pequenos pontos.

Era já noite cerrada quando faltou a luz. O escuro fê-la sentir estranhamente feliz... e perder definitivamente o fio à meada. Foi sem se dar de conta da sua própria desistência que se refastelou no sofá. Estava farta da sua teimosia, de tentar dar sentido às marcas indeléveis que há tanto tempo fizera. Não fora assim há tanto, sabia-o, mas o cansaço deturpava-lhe a noção temporal.

Acordou com os primeiros raios da manhã e as costas a latejarem, reflexo de demasiadas horas numa posição incómoda. Foi com dificuldade que se levantou, mas não deu mais do que dois passos até tropeçar no novelo. "Porra", gritou, mas ninguém ouviu.

Deixou-se estar no chão, a manusear a pequena bola de lã. Continuava sem conseguir descobrir os pontos que definira já lá iam vários meses. Foi num misto de tranquilidade e ansiedade que as lembranças a assaltaram. Nunca se considerara uma pessoa ingénua, mas percebia agora que nunca perderia aquela inocência infantil. A mesma que, em criança, a fizera acreditar na simplicidade do mundo.

Hoje, sabia que não era assim. "Se nem o raio do novelo consigo desfazer...", pensou, sem que se sentisse realmente preocupada. Sabia que o mau-humor era passageiro, ainda que o relógio continuasse a contar. Tomou banho, vestiu-se, comeu qualquer coisa. Foi com um sorriso nos lábios que saiu rua fora, a cantarolar. Reparou nos olhares de estranheza, quase de piedade, das pessoas com quem se cruzou, mas foi sem esforçou que os ignorou.

Regressou a casa com o lusco-fusco. Não fora um dia de grandes excitações, mas estava bem-disposta. Não sabia o que lhe reservava a noite ou o dia seguinte, tal como não conseguia desfazer o novelo. Nada que a fizesse pensar que havia motivo para alarme. As marcas a que só ela obedecia continuavam lá, à espera de verem a luz no momento certo. E, vendo bem, a inaudita guerra ainda não chegara à Avenida Gago Coutinho.