sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Quis um dia acordar e perceber que tudo já era passado
Que o que um dia nos uniu havia escapado
Qual calor de Verão que nos revitaliza mas depois desvanece
Mas nada em ti é passageiro.
Permaneces em mim e recusas partir,
Como se soubesses que por minha vontade nunca partirias
Mesmo que devas. Mesmo que seja o melhor para ambos.
Este néscio coração recusa olvidar-te
Por isso apenas me resta esperar que o tempo
Apague as marcas que deixaste em mim.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Sono Fátuo

Acordou com a televisão aos berros. Adormecera no sofá há já mais... procurou o relógio... de três horas. Doíam-lhe as costas. As pestanas pesavam. Mas o sono já se fora. A televisão continuava aos berros. Ele falava, falava e falava. O tom era inflamado mas cordial, o olhar era triste mas vivo, as mãos tremiam mas transmitiam firmeza. Falava, falava, falava, não se calava. Falava de si, do que fizera. Auto-elogiava-se. Dizia-se responsável por tudo de bom que acontecera.

Acordou com a luz da aurora a entrar pela janela. Adormecera no sofá há já mais... procurou o relógio... de duas horas. Estava cansado. Mas era hora de ir trabalhar. A televisão continuava ligada. Desligou-a. Tomou banho, comeu qualquer coisa e saiu. Tinha de ir trabalhar. Verificou se tinha a chave do carro e saiu.

Acordou com a buzina do outro carro, mesmo a tempo de se desviar. Invadira a via contrária e nem dera conta. Estacionou o carro, mesmo à porta da empresa. Cumprimentou o segurança, subiu no elevador, sentou-se a secretária e começou a trabalhar.

Acordou com o chefe aos berros. Está despedido! É a terceira vez esta semana que o encontro a dormir no horário de expediente! Faça o favor de se dirigir aos recursos humanos, tratarão da sua situação. O seu comportamento é inadmissível!

Sentiu uma dor no peito. Não voltou a acordar. O senhor presumido continuou a falar. Um néscio funcionário ocupou o seu lugar na empresa. A sua vida sucumbiu à efemeridade. Para sempre.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Passagem

Não estava quente nem fresco, mas sentia-se um leve peso de humidade no ar, como se a própria noite nos tocasse a pele. Punha-nos ainda mais cientes de que estávamos ali sozinhos.
O pântano não devia estar muito longe, para a nossa esquerda, mas o caminho de terra batida seguia para a direita, ladeado de ervas altas. Era iluminado somente pelo brilho azul da luz e das estrelas e pelo braço distante da Via Láctea que se distinguia do azul profundo do céu como um fio de diamantes.
A primeira parte do caminho era ao escuro, iluminado apenas pela natureza. Em silêncio avançamos por entre as canas e as plantas, reparando como até os insectos estavam estranhamente tranquilos. Não soava um zumbido ou um piar que fosse, apenas o som dos nossos passos cuidadosos mas ansiosos perturbando a noite.
O caminho levou-nos até uma pequena clareira onde já nos esperavam. Os pequenos fogos-fátuos que pairavam à altura das nossas cabeças, pulsando silenciosamente com chamas frias. Eram em mesmo número que nós, luzindo em cores ligeiramente diferentes, as suas formas também variando. De alguma maneira, cada um de nós sabia a qual se dirigir e, como se tudo estivesse previamente combinado, formamos um círculo na clareira, cada um de frente para o seu guia.
E subitamente estávamos a correr. Todos em direcções diferentes, cada um a perseguir a sua pequena chama. Dei por mim a correr monte acima, cada vez mais afastada do baixio dos pântanos. Conseguia ouvir a corrida ofegante de um dos outros, algures à minha direita. Seriamos levados para o mesmo local?
Lá ao fundo começava a formar-se uma silhueta sobre o monte que eu subia. Ao início, com os breves vislumbres que lhe conseguia dispensar pensei que fossem rochas sobre o monte. Mas depois as formas pareceram-me demasiado regulares. Eram as ruínas.
Quando comecei a perseguir a pequena chama azulada pelo meio das paredes de blocos escuros e meio desfeitos deixei de ouvir a presença de qualquer outra pessoa. A lua e as estrelas apagaram-se e o céu enegreceu. Só existia eu e o fogo e as paredes à minha volta, e tudo era frio. Primeiro desci, perdendo-me no labirinto de antigos caminhos, sem saber já se estava no interior de algum edifício ou se o céu estava tão escuro como breu.Depois subi. Tanto, tanto que perdi toda a noção de espaço que ainda pensava reter. Não conhecia aqueles corredores e escadarias meio desfeitos por onde passei, correndo e escorregando no musgo e na pedra gasta. O fogo-fátuo fugiu para umas escadas de caracol e eu seguí-lo, perseguindo-o escadas acima, sempre à volta à volta, de tal modo que me agarrava às paredes para não cair.
E então, por fim, encontrei ar fresco. O céu tinha aparecido novamente por cima de mim, tão brilhante e azul como no início da noite. A sensação de tontura persistiu, enquanto olhava em volta no pequeno patamar que era o topo de uma enorme torre. Via a terra toda, o pântano, os montes e, ao longe, o rio.
O meu guia tinha finalmente parado, pairando em frente da minha cabeça, no seu silêncio frio. Quando o fitei pareceu brilhar com mais intensidade e veio na minha direcção. Desviei-me mas perseguiu-me e entrou-me no peito, fazendo-me arfar de frio e calor. Perdi os sentidos.

Quando acordámos estávamos todos juntos. No topo das ruínas onde não muito tempo antes tínhamos ido brincar, em crianças. Não nos pareciam agora tão altas ou tão negras como na noite que passara.
Uma luminosidade matinal começava a dourar o horizonte e as pequenas chamas tinham-se desvanecido. Ficamos sentados a olhar o sol nascente, a noite anterior a tomar nas nossas mentes a forma de um sonho.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Perspectiva

Fora depois de ver na televisão o Mar Adentro que tivera a ideia. Se o espanhol que só movia a boca tinha conseguido, ele também conseguia.
Não era paraplégico mas quase mais valia que fosse, não tinha muito mais controlo do seu corpo. Tudo lhe tremia, se bem que quase imperceptivelmente.Os músculos não respondiam às suas ordens, e a boca já não formava as palavras como devia de ser. Ao menos o espanhol podia falar e escrever. Mais ou menos.
Era impossível falar disso aos filhos, e o enfermeiro que o acompanhava todos os longos dias muito menos o ajudaria. A sua única esperança era se algum dos netos ficasse sozinho com ele, por momentos, enquanto os pais fossem atender algum telefonema ou buscar algum chá ou mistela para o "animar". Ele não gostava de chá e eles não se lembravam, mas custava demasiado lembrá-los disso. E assim acreditavam que o ajudavam, e ficavam com a consciência livre. Não seria ele a impedir isso. Portanto, restavam os netos.
Nas horas nocturnas que passava sozinho treinava os gestos e os sons mal-formados que poderiam fazer uma das crianças entender que o avô queria os comprimidos brancos que estavam na cómoda. Talvez da próxima vez fosse possível estar sozinho com eles, e fazer-se entender. Depois era só uma questão de conseguir levar os comprimidos à boca. Ou a boca aos comprimidos, conforme fosse mais fácil.
Não gostava de pensar que as crianças pensassem que tivessem tido alguma culpa, mas acreditava que os filhos seriam capazes de impedir isso de acontecer. Era o avô que era velhinho e doente. Tinha chegado a hora dele.
E tinha. Mas mais ninguém parecia aperceber-se disso. Portanto ele estava reduzido a pensar, somente a pensar, num corpo que já não funcionava. Devia ter tido a coragem de fazer alguma coisa quando ainda conseguia andar, mas agora não havia nada a fazer. Nada a não ser tentar chegar aos comprimidos que lhe trariam a paz. A paz que ninguém parecia ter a caridade de lhe dar.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Sua...

Que chatice! Era sempre a mesma coisa... os carros estacionados em segunda fila que não davam espaço ao autocarro para passar. A pessoa que decidira dar àquela rua o nome de Rua da Beneficência de certeza que não conduzia ou andava de autocarro. Era todos os dias a mesma coisa! Será que ninguém percebia que a rua tinha de estar desimpedida para ele conseguir passar?

Todos os dias ouvia os seus clientes reclamarem. Eles percebiam, claro, que os carros não podiam estar ali estacionados. Os condutores dos carros é que não. Já estava farto de buzinar e o dono daquele carro nunca mais aparecia. Não iria conseguir cumprir o horário. E depois ele que não descansasse e que ouvisse os clientes. Claro, ele é que tinha de levar com tudo. E com um ordenado de miséria. E o raio do homem que nunca mais aparecia! Ou então era uma mulher. Se fosse, explicava tudo. Já não bastava acharem que tinham capacidade para conduzir, ainda tinham de atrapalhar a vida das pessoas que trabalham a sério...

Há já cinco minutos que apitava e foi então que ela apareceu. Era bonita. Muito bonita, mesmo. Cabelo arruivado, olhos esverdeados, extremamente bronzeada. Tinha um pequeno corte no lábio. Vinha a falar ao telemóvel. Olha a lata dela! Agora é que ela ia ver! Desceu do autocarro, aquecido pelo aumento de fluxo sanguíneo. Sacana! Ali a gozar com a cara dele, como se nada fosse. Agora é que ela ia ver!

Arrancou-lhe o telemóvel da mão. Gritou com ela. Chamou-lhe nomes, indo atrás dela à medida que ela se afastava. Não tens vergonha? Já viste o que andas a fazer? Sua... Ai se eu fosse teu marido, nem sabes o que eu te fazia! Ai, não sabes não! Ela afastava-se. E ele perseguia-a. Ela encostou-se à fachada do prédio. Ela não parou. Agrediu-a. Uma chapada que reabriu o corte que tinha no lábio. Ela agachou-se. Ele insistiu. Sua... Um pontapé. Ela gemeu. Bateu outra vez, descontrolado.

Do outro lado da estrada, um homem de fato e gravata saiu do prédio. Dirigiu-se, calmamente, ao carro que estacionara em segunda fila. Sabia que ela não se atreveria a fugir. Ela queixava-se, mas, no fundo, gostava. Gostava quando o via assim, enraivecido. De certeza que a entusiasmava. Aquilo de ter conseguido um telemóvel para pedir ajuda era só teatro, já sabia.

Meteu-se no carro. Pediu desculpa ao condutor do autocarro, sem reparar que ele não estava lá. Do outro lado da estrada, passava-se qualquer coisa. Um multidão amontoava-se. Que raio se teria passado? Ouviu as ambulâncias, o carro da polícia, mas não ligou. Seguiu viagem. À noite, quando a penumbra cobrisse a Beneficência, havia outra lição a dar.

sono.

embala-me que quando eu durmo não estou cá.
embala-me num singelo sono distante,
não estou por perto se chamarem por mim.
digam que me fui,
fui para longe, tão longe, já não volto
hoje amanhã nunca,
estou no longínquo para lá do horizonte e durmo.
já está, digam-me adeus ainda agora, naquele roçar pelo sono,
enquanto por cá ainda ando, que depressa me irei.
tomo comigo, em misericórdia,
a beneficência da irrealidade.