sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Quis um dia acordar e perceber que tudo já era passado
Que o que um dia nos uniu havia escapado
Qual calor de Verão que nos revitaliza mas depois desvanece
Mas nada em ti é passageiro.
Permaneces em mim e recusas partir,
Como se soubesses que por minha vontade nunca partirias
Mesmo que devas. Mesmo que seja o melhor para ambos.
Este néscio coração recusa olvidar-te
Por isso apenas me resta esperar que o tempo
Apague as marcas que deixaste em mim.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Sono Fátuo

Acordou com a televisão aos berros. Adormecera no sofá há já mais... procurou o relógio... de três horas. Doíam-lhe as costas. As pestanas pesavam. Mas o sono já se fora. A televisão continuava aos berros. Ele falava, falava e falava. O tom era inflamado mas cordial, o olhar era triste mas vivo, as mãos tremiam mas transmitiam firmeza. Falava, falava, falava, não se calava. Falava de si, do que fizera. Auto-elogiava-se. Dizia-se responsável por tudo de bom que acontecera.

Acordou com a luz da aurora a entrar pela janela. Adormecera no sofá há já mais... procurou o relógio... de duas horas. Estava cansado. Mas era hora de ir trabalhar. A televisão continuava ligada. Desligou-a. Tomou banho, comeu qualquer coisa e saiu. Tinha de ir trabalhar. Verificou se tinha a chave do carro e saiu.

Acordou com a buzina do outro carro, mesmo a tempo de se desviar. Invadira a via contrária e nem dera conta. Estacionou o carro, mesmo à porta da empresa. Cumprimentou o segurança, subiu no elevador, sentou-se a secretária e começou a trabalhar.

Acordou com o chefe aos berros. Está despedido! É a terceira vez esta semana que o encontro a dormir no horário de expediente! Faça o favor de se dirigir aos recursos humanos, tratarão da sua situação. O seu comportamento é inadmissível!

Sentiu uma dor no peito. Não voltou a acordar. O senhor presumido continuou a falar. Um néscio funcionário ocupou o seu lugar na empresa. A sua vida sucumbiu à efemeridade. Para sempre.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Passagem

Não estava quente nem fresco, mas sentia-se um leve peso de humidade no ar, como se a própria noite nos tocasse a pele. Punha-nos ainda mais cientes de que estávamos ali sozinhos.
O pântano não devia estar muito longe, para a nossa esquerda, mas o caminho de terra batida seguia para a direita, ladeado de ervas altas. Era iluminado somente pelo brilho azul da luz e das estrelas e pelo braço distante da Via Láctea que se distinguia do azul profundo do céu como um fio de diamantes.
A primeira parte do caminho era ao escuro, iluminado apenas pela natureza. Em silêncio avançamos por entre as canas e as plantas, reparando como até os insectos estavam estranhamente tranquilos. Não soava um zumbido ou um piar que fosse, apenas o som dos nossos passos cuidadosos mas ansiosos perturbando a noite.
O caminho levou-nos até uma pequena clareira onde já nos esperavam. Os pequenos fogos-fátuos que pairavam à altura das nossas cabeças, pulsando silenciosamente com chamas frias. Eram em mesmo número que nós, luzindo em cores ligeiramente diferentes, as suas formas também variando. De alguma maneira, cada um de nós sabia a qual se dirigir e, como se tudo estivesse previamente combinado, formamos um círculo na clareira, cada um de frente para o seu guia.
E subitamente estávamos a correr. Todos em direcções diferentes, cada um a perseguir a sua pequena chama. Dei por mim a correr monte acima, cada vez mais afastada do baixio dos pântanos. Conseguia ouvir a corrida ofegante de um dos outros, algures à minha direita. Seriamos levados para o mesmo local?
Lá ao fundo começava a formar-se uma silhueta sobre o monte que eu subia. Ao início, com os breves vislumbres que lhe conseguia dispensar pensei que fossem rochas sobre o monte. Mas depois as formas pareceram-me demasiado regulares. Eram as ruínas.
Quando comecei a perseguir a pequena chama azulada pelo meio das paredes de blocos escuros e meio desfeitos deixei de ouvir a presença de qualquer outra pessoa. A lua e as estrelas apagaram-se e o céu enegreceu. Só existia eu e o fogo e as paredes à minha volta, e tudo era frio. Primeiro desci, perdendo-me no labirinto de antigos caminhos, sem saber já se estava no interior de algum edifício ou se o céu estava tão escuro como breu.Depois subi. Tanto, tanto que perdi toda a noção de espaço que ainda pensava reter. Não conhecia aqueles corredores e escadarias meio desfeitos por onde passei, correndo e escorregando no musgo e na pedra gasta. O fogo-fátuo fugiu para umas escadas de caracol e eu seguí-lo, perseguindo-o escadas acima, sempre à volta à volta, de tal modo que me agarrava às paredes para não cair.
E então, por fim, encontrei ar fresco. O céu tinha aparecido novamente por cima de mim, tão brilhante e azul como no início da noite. A sensação de tontura persistiu, enquanto olhava em volta no pequeno patamar que era o topo de uma enorme torre. Via a terra toda, o pântano, os montes e, ao longe, o rio.
O meu guia tinha finalmente parado, pairando em frente da minha cabeça, no seu silêncio frio. Quando o fitei pareceu brilhar com mais intensidade e veio na minha direcção. Desviei-me mas perseguiu-me e entrou-me no peito, fazendo-me arfar de frio e calor. Perdi os sentidos.

Quando acordámos estávamos todos juntos. No topo das ruínas onde não muito tempo antes tínhamos ido brincar, em crianças. Não nos pareciam agora tão altas ou tão negras como na noite que passara.
Uma luminosidade matinal começava a dourar o horizonte e as pequenas chamas tinham-se desvanecido. Ficamos sentados a olhar o sol nascente, a noite anterior a tomar nas nossas mentes a forma de um sonho.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Perspectiva

Fora depois de ver na televisão o Mar Adentro que tivera a ideia. Se o espanhol que só movia a boca tinha conseguido, ele também conseguia.
Não era paraplégico mas quase mais valia que fosse, não tinha muito mais controlo do seu corpo. Tudo lhe tremia, se bem que quase imperceptivelmente.Os músculos não respondiam às suas ordens, e a boca já não formava as palavras como devia de ser. Ao menos o espanhol podia falar e escrever. Mais ou menos.
Era impossível falar disso aos filhos, e o enfermeiro que o acompanhava todos os longos dias muito menos o ajudaria. A sua única esperança era se algum dos netos ficasse sozinho com ele, por momentos, enquanto os pais fossem atender algum telefonema ou buscar algum chá ou mistela para o "animar". Ele não gostava de chá e eles não se lembravam, mas custava demasiado lembrá-los disso. E assim acreditavam que o ajudavam, e ficavam com a consciência livre. Não seria ele a impedir isso. Portanto, restavam os netos.
Nas horas nocturnas que passava sozinho treinava os gestos e os sons mal-formados que poderiam fazer uma das crianças entender que o avô queria os comprimidos brancos que estavam na cómoda. Talvez da próxima vez fosse possível estar sozinho com eles, e fazer-se entender. Depois era só uma questão de conseguir levar os comprimidos à boca. Ou a boca aos comprimidos, conforme fosse mais fácil.
Não gostava de pensar que as crianças pensassem que tivessem tido alguma culpa, mas acreditava que os filhos seriam capazes de impedir isso de acontecer. Era o avô que era velhinho e doente. Tinha chegado a hora dele.
E tinha. Mas mais ninguém parecia aperceber-se disso. Portanto ele estava reduzido a pensar, somente a pensar, num corpo que já não funcionava. Devia ter tido a coragem de fazer alguma coisa quando ainda conseguia andar, mas agora não havia nada a fazer. Nada a não ser tentar chegar aos comprimidos que lhe trariam a paz. A paz que ninguém parecia ter a caridade de lhe dar.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Sua...

Que chatice! Era sempre a mesma coisa... os carros estacionados em segunda fila que não davam espaço ao autocarro para passar. A pessoa que decidira dar àquela rua o nome de Rua da Beneficência de certeza que não conduzia ou andava de autocarro. Era todos os dias a mesma coisa! Será que ninguém percebia que a rua tinha de estar desimpedida para ele conseguir passar?

Todos os dias ouvia os seus clientes reclamarem. Eles percebiam, claro, que os carros não podiam estar ali estacionados. Os condutores dos carros é que não. Já estava farto de buzinar e o dono daquele carro nunca mais aparecia. Não iria conseguir cumprir o horário. E depois ele que não descansasse e que ouvisse os clientes. Claro, ele é que tinha de levar com tudo. E com um ordenado de miséria. E o raio do homem que nunca mais aparecia! Ou então era uma mulher. Se fosse, explicava tudo. Já não bastava acharem que tinham capacidade para conduzir, ainda tinham de atrapalhar a vida das pessoas que trabalham a sério...

Há já cinco minutos que apitava e foi então que ela apareceu. Era bonita. Muito bonita, mesmo. Cabelo arruivado, olhos esverdeados, extremamente bronzeada. Tinha um pequeno corte no lábio. Vinha a falar ao telemóvel. Olha a lata dela! Agora é que ela ia ver! Desceu do autocarro, aquecido pelo aumento de fluxo sanguíneo. Sacana! Ali a gozar com a cara dele, como se nada fosse. Agora é que ela ia ver!

Arrancou-lhe o telemóvel da mão. Gritou com ela. Chamou-lhe nomes, indo atrás dela à medida que ela se afastava. Não tens vergonha? Já viste o que andas a fazer? Sua... Ai se eu fosse teu marido, nem sabes o que eu te fazia! Ai, não sabes não! Ela afastava-se. E ele perseguia-a. Ela encostou-se à fachada do prédio. Ela não parou. Agrediu-a. Uma chapada que reabriu o corte que tinha no lábio. Ela agachou-se. Ele insistiu. Sua... Um pontapé. Ela gemeu. Bateu outra vez, descontrolado.

Do outro lado da estrada, um homem de fato e gravata saiu do prédio. Dirigiu-se, calmamente, ao carro que estacionara em segunda fila. Sabia que ela não se atreveria a fugir. Ela queixava-se, mas, no fundo, gostava. Gostava quando o via assim, enraivecido. De certeza que a entusiasmava. Aquilo de ter conseguido um telemóvel para pedir ajuda era só teatro, já sabia.

Meteu-se no carro. Pediu desculpa ao condutor do autocarro, sem reparar que ele não estava lá. Do outro lado da estrada, passava-se qualquer coisa. Um multidão amontoava-se. Que raio se teria passado? Ouviu as ambulâncias, o carro da polícia, mas não ligou. Seguiu viagem. À noite, quando a penumbra cobrisse a Beneficência, havia outra lição a dar.

sono.

embala-me que quando eu durmo não estou cá.
embala-me num singelo sono distante,
não estou por perto se chamarem por mim.
digam que me fui,
fui para longe, tão longe, já não volto
hoje amanhã nunca,
estou no longínquo para lá do horizonte e durmo.
já está, digam-me adeus ainda agora, naquele roçar pelo sono,
enquanto por cá ainda ando, que depressa me irei.
tomo comigo, em misericórdia,
a beneficência da irrealidade.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Quadra Festiva

Os flocos de neve caíam no exterior mas já era demasiado tarde para as crianças irem brincar para o jardim. A ocupação principal naquela casa enfeitada de luzes e cores natalícias era agora a preparação da ceia. A dona da casa, a avó Clotilde e a nora organizavam a cozinha com a perícia do hábito e tudo estava quase pronto, até o bolo rei caseiro que era a especialidade da avó. Na sala, Vasco punha a mesa com a ajuda da filha mais velha, deviam acabar antes dos primos chegarem, mas o senhor estava distraído com o especial de Natal que dava na televisão. Do andar de cima vinham os sons dos dois pequenos a brincar com o tio Samuel, ou a partir a mobília como a avó Clotilde gostava de dizer.
Como em Natais anteriores, tudo ficou pronto a horas e quando os primos chegaram, cumprimentaram-se todos com sorrisos e abraços cheios do espírito da época. A algazarra das crianças multiplicou-se e deu-se a habitual caça às crianças para as conseguir sentar todos na mesa dos pequeninos com moderado silêncio e a comer.
À mesa da avó Clotilde, com se costumava chamar a mesa que os adultos ocupavam, a conversa caiu como acontecia sempre, na economia, nos negócios de família que quase todos partilhavam. Isto até à avó Clotilde proibir a conversa de trabalho. Começava então um outro tipo de conversa.
- Então, já tiraste a carta? - perguntou Lídia, a mulher de Vasco, ao filho mais velho dos primos de Santarém, um rapaz silencioso que aprimorava a arte de parecer miserável.
- Nah... - respondeu ele.
- Nem todos têm um lugar reservado na melhor escola de condução, não é verdade? - comentou o pai do rapaz, com um sorriso a Lídia.
- Nós deixamos o Ti tomar as suas decisões - disse a mãe do rapaz de maneira assertiva, olhando ligeiramente para Sara - temos confiança que ele sabe o que é melhor para ele.
- Sim, como vai essa mudança de área? - perguntou Vasco ao rapaz - deves gostar mesmo de artes para ter decidido repetir o décimo segundo. Não vais ter de ficar ainda mais um ano?
- Comam mais bacalhau - ordenou Clotilde, subitamente cortando a conversa. Todos obedeceram, ocupando-se a passar o bacalhau e os acompanhamentos. Na mesa das crianças parecia haver um concurso de sons de animais.
- Samuel, como vai esse projecto? - quis saber o primo de Santarém.
- Ah. Foi aprovado. Mas temos de procurar patrocínio - respondeu o jovem.
- Parabéns, então - disse ele - esperemos que não demore outro meio ano, não é?
- Podes sempre voltar ao negócio de baby-sitting, se o projecto não funcionar - comentou Vasco, juntando-se à conversa.
- É, se calhar. Se calhar começo já a praticar outra vez - acrescentou - posso tentar impedir que os vossos filhos ofereçam o jantar ao tapete. Será que consigo? - levantou-se da mesa e juntou-se aos pequenos, sorrindo-lhes e pegando no garfo de um deles que quase escorregava para o chão.
- Não se esqueçam que há sobremesa - lembrou a avó Clotilde.
No fim do jantar, as crianças foram deitadas e a família reunida separou-se aos dois e três, em conversas diversas. Da sua cadeira de baloiço, a avó Clotilde observava a sua descendência.
- Sara, minha filha - disse a velhota à rapariga que lia, sentada no tapete - espero que saias à avó.

(Desculpem o texto enorme >.<)

sábado, 30 de outubro de 2010

as meias palavras chegam

as meias palavras chegam.
as frases de longos significados já se perderam
noite
após noite
após noite
quando queres esbanjar as lágrimas por aí,
pelo mundo mudo e surdo.
que não te quer. ou que não queres tu.

se não chegas lá, se te perdes pelas estradas de labirintos que crias,
então a culpa não é de outrem nem de ninguém, apenas tua.
e sentes as nódoas de egoísmo que te calam,
porque quem quer ser o menos infeliz?
não digas, irmão antigo do silêncio, que do que é mau não se fala.
insinua então a ti mesmo, no segredo das meias palavras escondidas,
e descobre por que chorar.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Insinuaste a verdade
e eu não compreendi.

Contaste uma mentira
e eu acreditei.

Insististe
e eu nã0 liguei.

Desististe
e eu chorei.

Ligaste.

Atendi.

silêncio. silêncio. silêncio.

pi. pi. pi.

Liguei.

Atendeste.

silêncio. silêncio. silêncio.

pi. pi. pi.


Acabaram-se as insinuações.

domingo, 3 de outubro de 2010

Chegou a hora de inalar a frescura nocturna que me purifica.
Ao respirar fundo sinto clarear a mente, e com um arrepio,
desperto os sentidos que o cansaço desse dia entorpecera.
Chegou a hora de te sentir chegar.
Arrepiar-me ainda mais, desta vez com o calor do teu abraço.
Olhar para ti e saber que nesse momento tudo faz sentido,
mesmo sabendo que ao primeiro raio de sol tudo terá desaparecido.
Enquanto a noite durar os sonhos podem ser reais,
enquanto este refrigério durar, sentirei a tua pele quente.

Não consigo adormecer com medo de perder um segundo que seja
deste alívio de te ter aqui,
da alegria que sinto por estarmos finalmente sós.
Permaneces acordado comigo, ambos mudos de palavras, sedentos de olhares.
Conversamos noite fora, num diálogo mudo feito de gestos, sorrisos, beijos e olhares.
Por fim ergue-se o sol e o que resta do refrigério da noite
em breve desvanecerá perante o calor que o dia emana.
Chegou a hora de te ver partir...

domingo, 26 de setembro de 2010

Refrigério Sazonal

- O Refrigério está aí à porta. Protege-te! - disse-lhe a avó.
- O quê? - perguntou o Miguel, atarantado.
- O Refrigério, querido, o Refrigério. Tens de te proteger. Ainda ficas doente e depois é que não podes mesmo sair de casa.
- Mas eu não sei o que é o Refrigério. Nunca ouvi essa palavra.
- Ora essa! Como é possível? Passei anos a alertar o teu pai para o Refrigério. Ele nunca te disse para teres cuidado com a frescura do Outono?
- Ah, sim, isso sim! Não sabia que o Refri...gério era isso. Por que é que lhe chamas isso?
- Ora, porque tem muito mais piada. - disse a avó, com um pequeno brilho no olhar.
- Porquê?
- Diz-me, Miguel, tu gostas do Outono?
- Adoro! É a minha estação preferida!
- A sério? Porquê?
- Sei lá... Gosto do tempo fresco a seguir à sauna do Verão. Gosto das folhas que caem das árvores e ficam espalhadas pelo chão. E há aquele cheiro, dos dias de chuva. O cheiro a chuva, e a terra molhada, e a café queimado. Gosto disso tudo! Ah, e o vento. O barulho que faz. As árvores a abanarem. É tudo bonito! - respondeu o Miguel, com um entusiasmo crescente na voz.
- Estou a ver que gostas mesmo do Outono... - disse a avó, os seus olhos cada vez mais brilhantes. - E agora diz-me lá: achas que Refrigério não é um bom resumo de tudo o que explicaste?
O Miguel ficou pensativo. Nunca imaginara que pudesse existir uma palavra para resumir o seu sentimento em relação ao Outono. Mas a avó tinha razão, aquela era a palavra ideal para falar da frescura do Outono. Mal conseguia conter a excitação quando lhe respondeu:
- Tens razão, 'vó! Refrigério fica mesmo bem! Vou já vestir o casaco para não ficar doente por causa do Refrigério! Depois ainda tinha de ficar em casa e deixava de contemplar a sua beleza... Obrigada, 'vó! És a melhor avó do mundo!

Aos saltinhos, foi buscar o casaco ao quarto. Nas suas costas, a avó sorria. Elogios como aquele faziam-na sentir-se tão fresca como nos seus tempos de menina e moça.

domingo, 12 de setembro de 2010

Prenda de aniversário

Situações do género passam a vida a acontecer, imagino eu, mas o facto é que, desde o início, nunca gostei por aí além dos meus dentes.
Desde pequeno que me lembro de olhar para o espelho e ver duas protuberâncias demasiado afiadas no lugar dos caninos. No que respeita aos dentes em geral eles encontravam-se desalinhados, uns encavalitados, outros deixavam antever um franco progresso na sua descalcificação. Depois havia sempre aqueles dois irmãos da frente, demasiado prepotentes para a importância real que tinham. Era graças a eles que ganhei, a certa altura da minha vida, a alcunha de dentuça.
 No primeiro dia de Outubro, altura em que completei os 28 anos, olhei-me ao espelho da casa-de-banho para fazer um balanço geral da minha vida, tal como é meu apanágio em todos os aniversários.
Portanto, encontrava-me a viver num cubículo com espaço para uma cama, um frigorífico e a televisão; a trabalhar seis dias por semana, das nove às dezanove; recebia o suficiente para comer e para pagar as contas da casa, mas ainda não o bastante para iniciar um tratamento de ortodôncia; vestia-me mal e o insucesso com as mulheres persistia.
Não se pode dizer que tivesse uma má vida, mas o que me deixava seriamente deprimido eram aqueles dentes. Decidi então dar um presente a mim próprio naquele dia especial e apelar à minha criatividade.
Depois da minha reflexão saltei o passo de lavar os dentes e segui logo para o pequeno-almoço. Uma taça de cereais com muito leite, assim ficava também já almoçado. Faltei ao trabalho para me mimar um pouco no sofá a ver documentários sobre animais selvagens.
Quando o sol deixou uma mancha vermelha sobre toda a cidade fui ao frigorífico e tomei um vinho qualquer carrascão. Saí então de casa e deambulei um pouco ao som de John Coltrane, na perspectiva de ser guiado pelos carismáticos apontamentos do mestre do jazz.
Acabei por entrar no Phil's, um bar bastante popular onde se podia beber dos melhores cocktails ou ouvir uns concertos de rock.
- Queria um conhaque bem aviado, se faz favor - Pedi ao barman.
Bebi aquilo de um gole, atirei para a bancada os 3 euros, e fui para o pé de um casal que namoriscava na penumbra resguardada de um canto do estabelecimento.
- Vejam bem. Não têm casa onde fazer estas poucas vergonhas, por isso vêm para bares tocar-se e provocar os clientes! - disparei eu para o casal que ficou subitamente surpreendido.
- Sim estou a falar com vocês! desenvergonhados, obscenos! - E levantei a mão à pobre jovem, perpelexa com a minha fúria.
O namorado não esteve para meias medidas e deu-me um murro que foi direitinho ao meu estômago, deixando-me com falta de ar.
- É o melhor que sabes fazer seu merdas?
Seguiu-se um murro na cara e alguns pontapés quando já estava no chão.
Expulso do bar, fui com dificuldade para casa. Cuspi algum do sangue que se misturava com saliva para o lavatório, lavei a cara e sorri para o espelho.
Fiquei feliz com a transformação.

sábado, 11 de setembro de 2010

Dentes

Às vezes parece que nos têm de dar um murro nos dentes para acordar. Estamos tão embalados nos nossos próprios mundos que nem vemos o que se passa fora do nosso crânio. Antes de darmos conta estamos a fazer coisas que achávamos que só os outros faziam. Nós somos sempre anjos. Ou sempre demónios, porque nunca estamos à altura daquilo que "devíamos" ser.Perdemos noção do "eu" do "tu" e do "nós". Perdemos noção de muitas coisas que para nós eram importantes. E depois, paramos, olhamos para nós e não sabemos como chegámos aquele estado.
Um bom murro na dentuça. Para acabar com o drama e com a parvoíce, para sentir a realidade onde ela dói e ficar sem um dente ou dois, sentir o sabor férreo da vida. E depois pegar em nós e limpar o sangue na manga e continuar. E esperar ao menos não fazer a mesma porcaria, até ao próximo murro. 

domingo, 5 de setembro de 2010

A Família Dentuça

Os pais puseram-lhe o nome de Felizmina Dentuça, em homenagem ao irmão que morrera três meses antes. Queriam que ela fosse tão feliz quanto ele fora, que estivesse sempre tão feliz como ele estava quando morrera na praia. Desejavam, sobretudo, que o nome Felizmina lhe desse a sorte de, tal como o irmão, levar as pessoas a perguntar-se qual o porquê de lhe chamarem Dentuça.

Feliz Dentuça fora um rapaz feliz com dentes pequenos. Desde criança que a sua pequena dentuça alegrara todos à sua volta. O sorriso, mais do que o riso, era frequente e tinha o condão de aquecer qualquer coração mais triste. Era particularmente eficaz quando estava junto do pai. O pai, Infeliz Dentuça, raramente mostrava a dentuça que herdara da família. Era um verdadeiro Dentuça. Infeliz como só eles sabiam ser. Com dentes grandes como só eles sabiam ter. Nada que denunciasse o frágil coração de oiro que batia no seu tosco peito.

Naquele dia, Sortuda Dentuça ficou debaixo do chapéu-do-sol, enquanto os homens Dentuça passeavam à beira-mar. Normalmente, acontecia o oposto. Eles ficavam por ali e ela ia passear. Seis meses de gravidez tinham sido suficientes para alterar a rotina. A Dentucinha que iria nascer já pesava demasiado para passear à beira-mar. Esperava que esse peso não fosse sinal de que os seus dentes seriam como os do seu querido Infeliz.

Conheceram-se quando, ainda na escola primária, ela o defendeu dos colegas que o humilhavam devido aos seus dentes salientes. Não fora capaz de ficar a olhar, como se não fosse nada com ela. Com o tempo, tornaram-se amigos inseparáveis. Com a idade, a amizade deu lugar ao amor. Agora, formavam uma família feliz e brevemente teriam o casalinho que desejavam desde que o pequeno nascera, há já 17 anos. Ainda que implorassem por dentes pequenos, estavam sempre a postos para defender o Dentuça sénior até às últimas consequências. Só assim eram verdadeiramente felizes.

Nesse momento, apercebeu-se da agitação na praia. Viu o nadador-salvador a correr em direcção ao mar, as sirenes a perturbarem a aparente tranquilidade da praia. Sentiu um aperto no coração e um grande pontapé da sua Dentucinha. Soube instantaneamente que o casalinho já nã0 existiria. O seu Feliz, o maravilhoso Feliz, acabara de morrer. Nunca poderia deixar que o seu fantástico pai fosse humilhado por aqueles parvos, infelizmente armados. Naquele dia, o coração de oiro revestiu-se de pedra.

Felizmina Dentuça sorriu pela primeira vez. A água começou a amolecer o coração de pedra, que nunca viria a ser mais do que feito de prata dourada. Não tinham o casalinho, era certo, mas Felizmina Dentuça era uma dádiva que não podiam desperdiçar. Tal como o seu saudoso irmão, já era capaz de aquecer corações.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

'Vida maldita…’ murmurou. Altas pressões, baixas pressões, chuvas fracas, aguaceiros, sol, céu nublado ou limpo… Tudo aquilo era, ainda há uns meses, uma mera curiosidade para ajudar a escolher a roupa do dia seguinte. Agora, enquanto se sentava na cadeira para ser maquilhada, estudava as folhas com os gráficos e tabelas da meteorologia que iria apresentar daí a minutos. Repetia para si o texto enquanto olhava para os gráficos. Já conseguia perceber as variações na pressão atmosférica e o seu impacte no tempo. Pensou no pai e como este ficaria decerto mais satisfeito com uma carreira na meteorologia do que na moda. Ironia do destino, tudo o que conseguira como modelo fora aquela oportunidade de apresentar o boletim meteorológico nos últimos cinco minutos do telejornal da noite, e mesmo isso graças a uma cunha de uma amiga. Nem o facto de aparecer na televisão todas as noites parecia surtir algum tipo de impacto na sua vida, para além do desconforto quando alguém ficava especado a olhar para ela, decerto tentando perceber de onde aquela cara lhe era familiar. E o pior é que nunca fora tão feliz em toda a sua vida…

‘Vamos a isto?’, ouviu uma voz calorosa questionar fazendo-a rodar sobre a cadeira enquanto sorria para a maquilhadora. ‘Siga. Algures haverá uma modelo à espera para saber o que vestir amanhã’ respondeu de sorriso nos lábios…

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O prazer dos peixes

Para um jovem habituado a uma vida à beira mar, aquela montanha branca afigurou-se um desafio maior do que esperava.
Dava pela alcunha de Sardinha Júnior, o filho de uma família de pescadores. A pele era bronzeada, o cabelo dourado, e os músculos dos braços bem definidos. Até aos 18 anos não fez outra coisa a não ser remendar as redes de pesca, ocasionalmente rompidas ou enleadas, que o pai trazia para casa. No seu 18º aniversário, numa cerimónia dirigida pelo patriarca da casa, foi-lhe concedido um barco baptizado com o nome da sua futura esposa - Amélia -, e recebeu o aval da família para iniciar a sua carreira piscatória.
Não se podia dizer que fosse um mau pescador, todas as noites trazia pelo menos um robalo ou meia dúzia de taínhas para casa. A profissão ate lhe agradava bastante, principalmente de Verão quando o mar estava calmo e espécies migratórias juntavam-se às locais aumentando assim a apanha em alto mar. Era também nesta altura que trazia consigo a sua Amélia de carne e osso, para juntos fazerem amor até ao sol se pôr. Ali, no território dos peixes, não tinha de se preocupar com mirones ou com o barulho que faziam. Era só ele, ela e os peixes, numa harmonia e calmaria insolúveis. Os belos tempos que viriam, no entanto, a terminar.
Estes Verões acabaram e um Inverno em especial chegou.
Como era seu dever, o jovem adulto partiu de manhãzinha para mais um dia de pesca. O tempo estava cinzento daí que tivesse vindo prevenido com um corta-vento e um chapéu de plástico amarelo impermeável. Precauções ingénuas.
Por volta do meio-dia o mar ficou demasiado agitado até para para os peixes. A Amélia trairia o seu fiel navegador virando-se ao contrário e o Sardinha Júnior arriscara-se a abraçar o mar para nunca mais voltar.
Quis o destino que ele conseguisse agarrar-se a um pedaço de madeira para assim navegar ao rumo da  maré durante dois dias.
Acabou por dar com terra firme. Encontrou salva e comeu raízes de árvores, uma dádiva generosa da natureza que lhe permitiu aliviar a fome.
Não havia forma de voltar atrás e encarar aquele mar traiçoeiro mais uma vez. Tinha de continuar em frente! O que o esperava eram uns quilómetros de mato que precediam uma enorme montanha. Ele sabia que a tinha de escalar para tentar chegar a uma eventual povoação que pudesse estar do outro lado.
Escalou durante uma semana, apoiado pelas propriedades medicamentosas da salva junta com a carga nutritiva das raízes das árvores que havia guardado.
O que o viria trair fora a pressão atmosférica que certamente rebentaria com a escala de qualquer barógrafo.
Para um rapaz habituado a viver ao nível da água, subir aquele território de nenhures representava uma conquista que nenhum homem ou animal devia ser permitido alcançar.
Foi ali que compreendeu o que é ser-se asmático. A cada passo que dava respirava com mais dificuldade. Uma inspiração normal lá em baixo era o equivalente a três ou quatro ali em cima para manter os níveis de oxigénio normais.
Eventualmente acabou por desmaiar perto do cume, quando a pressão atmosférica desceu para níveis surreais. Não o fez, porém, sem antes pensar no Verão que chegaria dali a uns belos meses, e nos momentos de prazer de que já tinha saudades.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

- Wow, espectáculo! Mesmo fixe!
- Vês, filho? Olha bem para o centro do desenho. Agora vai aumentar. E daqui a nada diminuir. E depois aumentar outra vez.
- Já está! Olha, desce a olhos vistos!... E continua... Pai, não disseste que ia crescer outra vez?

Já não se lembrava da resposta que o pai lhe dera. Na verdade, quase não tinha memórias da sua vida anterior. Não voltara a ver os seus amigos, cujos nomes esquecera. Da família, recordava-se apenas do pai e apenas por esse nome. Com o tempo, habituara-se a chamar-se Filho. Também pouca diferença fazia. Ninguém falava a mesma língua naquela casa onde pareciam ter sido guardados os últimos exemplares da espécie humana e quem precisa de nomes quando não existe comunicação?

Também perdera a noção do tempo. Olhar para as paredes imaculadamente caiadas de branco era como visualizar a sua própria mente. Aquela conversa, a última conversa, era a música que o mantinha vivo, tal como a amálgama de sons indecifráveis e mecânicos que todos os dias povoava a casa tornava mais fáceis os seus dias intermináveis.

Perguntava-se se algum deles saberia dizer o nome daqueles desenhos na sua língua materna. O Pai, disso lembrava-se, chamara-lhes centros de pressão atmosférica. Uns eram os centros de alta pressão e outros de baixa pressão. No computador, ele via como ela, a pressão, aumentava no centro de uns e diminuía no centro de outros. Ao pé deles, aquele instrumento. O instrumento que sentenciara o fim da vida que conhecera até então: o barógrafo. Lá estava ele, o registo mais baixo de sempre, o Apocalipse. E a casa branca, cheia de gente desconhecida. A sua nova vida. Totalmente desprovida de significado, a não ser por aquela última conversa. Da sua vida anterior. O momento passado que explicava o futuro.

Sem se aperceber, reflectia em voz alta. Na sala que desconhecia, os mais recentes descendentes dos macacos sentiram o seu recém-criado mundo desmoronar-se. Ali estava a ameaça de que o profeta falara. Havia que tomar medidas.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Este querer não te querer
Expulsando-te a cada instante da minha vida
Apenas para te convidar a voltar a cada suspiro

Escrever o teu nome numa lista de ausências
Para que cada gesto por mais pequeno que seja
Ganhe nova dimensão e eu possa assim dizer
Que me enganei a teu respeito

E dar por mim à procura de te inserir
No meu mundo, uma e outra vez
Numa luta sem sentido
Em que me recuso a baixar os braços e deixar-te partir
Jurando que não terás em mim lugar
para regressar.

domingo, 22 de agosto de 2010

Hey me

Sentada na ponta da cama, virada para a cómoda, olhava-se no espelho enquanto comia. Os pequenos pedaços de chocolate desfaziam-se na boca, um após o outro, à velocidade do pensamento.
O espelho reflectia a mesma imagem de todos os dias, com o passar dos anos habituara-se a ver aquela pessoa “obesa”, como gostavam de lhe chamar, e a identificá-la como sendo a mesma da fotografia da moldura em cima da cómoda. Era a única fotografia sua que havia em casa: tinha 10 anos quando a tirou e nessa altura era normal. Normal. Ria-se.
Sabia que não devia comer chocolates, que não devia ter almoçado croquetes com batata frita, que aquele litro de coca-cola não devia sequer ter entrado em casa. Sabia isso tudo porque todos faziam questão de lho dizer várias vezes ao dia. O que ninguém lhe dizia era como podia ela fazê-lo. Ou deixar de o fazer, melhor dizendo. Dizendo? Pensando. Na verdade, há muito que não partilhava os seus pensamentos. Ninguém parecia querer saber. As amigas da escola tinham deixado de aparecer, a família parecia conhecer apenas duas frases: “tens de fechar a boca”, “vais ficar para tia” como se isso importasse. O chocolate era o seu único conforto. O chocolate era o seu único conforto. O chocolate era o seu único conforto. Sim, tinha de o repetir.
Mas, afinal, se o chocolate lhe sabia sempre tão bem, para quê parar? O mundo, fora do quarto, fingia não a ver (como se fosse possível, pensava sorrindo)… Se ao menos alguém quisesse realmente saber…
Último pedaço de chocolate. Será que há mais?

OBE

Foi acompanhada de um estranho silvo que a Senhora H subiu, e subiu, e subiu.
A visão estava enublada, a mente confusa, mas o corpo nem o sentia. "Terei morrido?". Fez um esforço para aclarar os sentidos e aí viu, com choque, o seu corpo prostrado numa marquesa a ser manipulado por cirurgiões experientes de bata e luvas manchadas de sangue.
Procurou beliscar-se mas nada aconteceu. Tentou gritar mas só havia vácuo. Queria fechar os olhos mas eles não podiam ser fechados. Também lhe custou a mover-se. Só mais tarde se apercebera de que não podia continuar a ordenar que os seus antigos membros de carne e osso se mexessem. Eles já não existiam, só a sua essência pairava no ar. A mente deixara agora de ser a mediadora entre a vontade e a acção. A mente passara a ser a vontade e a acção, um todo.
Novas percepções da realidade foram então captadas pela Senhora H. Como um bebé ela abriu muito os olhos e aceitou finalmente o conceito do 16 por 9, uma visão alargada das coisas.
Deixou-se ficar no seu espaço sideral a observar um corpo que um dia já fora seu. Contemplou os choques eléctricos que aquela carcaça recebia. Via o pessoal apressado lá em baixo a fazer de tudo para que ela voltasse à vida, qual Frankenstein.
Aquelas mãos que já experimentaram a sensação áspera da barba de um marido apaixonado, a levantarem sem o seu consentimento. Os seus ouvidos que ouviram tantas vezes as palavras doces e demasiado generosas do seu amante; o nariz que cheirou as noites intensas que passaram os dois juntos; a boca que experimentou tantos paladares do seu filho licenciado na arte da culinária.
Sentiu nostalgia e morreu uma vez mais para voltar ao estado etéreo.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Reinserção

Ele não queria sair. Não estava pronto. Assim que voltasse para casa ia vê-los, e os pais não iam conseguir impedir de sair com eles. Ia ser uma cerveja primeiro, depois um cigarro, depois um shot e por aí em diante até que subitamente ele estaria a evitar voltar para a clínica e não a evitar sair de lá.
Bateram à porta do quarto e J. demorou o mais que se atrevia a ir abrir. Estava na hora, vinham-no buscar. Pegou nas suas coisas uma a uma, enquanto respondia  monosilabicamente à assistente social. Depois, seguiu-a a arrastar os pés até aos degraus da entrada a clínica. Sentou-se no degrau de cima. Os seus pais chegariam a qualquer momento, dizia-lhe a assistente.
Apoiou o queixo nas mãos, olhando a estrada. Não sabia se estava à espera que o carro chegasse ou a desejar que nunca aparecesse. Folhas laranja e vermelhas caiam das árvores, espalhando-se pelo pátio e pelo alcatrão da estrada, mas ele não reparou sequer. Quando chegara à clínica tinha sido Outono, também, e agora parecia-lhe impossível que tivesse passado um ano.
O carro branco chegou, com os seus pais lá dentro. Levantou-se. Quando se cumprimentaram, foi com uma sensação de estranheza. Ajudaram-no a arrumar as malas e J. respondeu às perguntas de cortesia nervosas como se estivesse a dizer falas de uma peça.
Não queria voltar. Ia tudo correr mal. Ele ia ter de ir para a clínica outra vez. Durante a longa viagem de carro, nem viu o cenário que lhe corria à frente dos olhos fixados na janela. Aqueles pensamentos ecoavam-lhe na mente, fazendo-o aperceber-se de que não queria voltar para a clínica. Mas ir para casa não lhe parecia uma boa alternativa.
Quando o carro finalmente parou já era de noite e J. percebeu que não estavam à frente da casa dos pais. Demorou algum tempo a localizar-se, mas depois viu os avós a acenar, sorridentes, dos degraus da casa e compreendeu.
"O que achas de ficar cá um tempo, filho?" perguntou-lhe o pai, antes de sair do carro. J. sorriu finalmente. Estava a voltar. Mas ao mesmo tempo não estava. Pensou que talvez fosse gostar.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O Cego Ideal

- Reinserção! Reinserção! Reinserção! - gritavam eles, em plena Avenida. Há anos que o faziam, tantos quantos os que ele os ouvia. Gostaria de poder dizer que os via, mas ver era para ele tarefa impossível.
Nascera cego e cego se mantivera. A idade apagara-a o tempo e a sociedade era para ele um mundo exterior. Nunca se inserira nela e, talvez por isso, nunca comprendera o significado da palavra que os outros berravam. Como falar de reinserção sem inserção? E como falar de inserção sem exclusão?
Exclusão. Isso ele sabia bem o que era, não fosse ela a sua vida. Uma vida miserável, dizem todos. Todos menos ele. Fantástica, diz ele. Sim, fantástica. Até mais do que fantástica. Ideal. Ideal vem de ideia, dizem os eruditos. E tantas ideias que ele tinha! Eram ideias atrás ideias, todos os dias, a todos os minutos. E ele via-as! Via-as tão bem como não via aqueles que todos os anos enchiam a Avenida. Esses que, ano após anos, gritavam "reinserção! reinserção! reinserção!". Quantos deles teriam realmente ideias?
Mas não se pense que ele não gostava deles. Ele gostava, oh, se gostava! Era o calor humano. Era a festa. Era a alegria. Era a humanidade. Sentia-se outro. Apetecia-lhe ser como eles. Queria ser como eles. Mas não podia. Afinal, reinserção implica sempre inserção. E inserção implica sempre exclusão. Exclusão. Vida ideal, de ideias. Mas de que servem as ideias quando não se tem afecto?

sábado, 14 de agosto de 2010

pequeno sopro cansado

pequeno sopro cansado de nada,
vogando dormente no estio abrasador,
que areias arejaste com carícias,
que cativos desertos libertaste do calor?

pequeno sopro cansado de sonho, 
encanto tecido de lábios no poente,
como estrelas a jorros de infantis mãos,
canções feitas para murmúrios, somente.

pequeno sopro cansado de silêncio,
mascarra no marasmo alvo dos dias,
quantos dentes-de-leão afagaste,
pedaços fluentes de memórias fugidias?

dorme agora, pequeno sopro cansado do mundo,
velado pelas cortinas corridas do tempo.
dorme em paz, pequeno sopro cansado e moribundo,
sem saberes que destino é sopro como tu,
talhado pelo amar caótico de deuses.

Impossível

As pequenas manchas caiam lenta e silenciosamente, inundando o céu perante o olhar dos transeuntes. Todos usavam máscaras com um purificador de ar e os olhos protegidos por óculos largos e estanques. Em poucos momentos tinham voltado aos seus afazeres, ignorando a cinza que começava a dominar os passeios e as paredes das casas.
Apenas um par de olhos continuava a fitar o céu cinzento, os de um homem grisalho que tinha estado a arrumar os produtos da sua banca.
"Dizem que em tempos chovia água..." murmurou, mais para si do que para os poucos clientes que o rodeavam. Um rapaz que observava um relógio de corda antigo riu-se.
"Água? Mas isso é impossível" disse, do alto dos seus oito anos. "Toda a gente sabe que água vem das minas... só pessoas corajosas como a minha mãe é que a encontram."
"Com certeza, com certeza..." replicou o homem, acenando ao rapaz através da máscara. Voltou a olhar para o céu. Dizia-se que em tempos o céu tinha sido azul e que havia água sobre a terra, simplesmente ali, parada, para qualquer pessoa usar. Abanou a cabeça e concentrou-se no que estava a fazer, sacudindo as pequenas partículas cinzentas de cima das suas antiguidades. Era impossível, de facto. Mas também tinham dito que era impossível haver as construções tão grandes como montanhas de que falavam as lendas. E não tinha ele encontrado essas construções nas suas viagens, quando era jovem? Não tinha ele tirado de lá as suas antiguidades? Acreditara que ia achar o "mar"... mas tinha aprendido que nem todas as lendas era verdadeiras. Ao longo dos anos esse sonho desvanecera-se como as cinzas que ele agora limpava de um aparelho que não sabia para que servia.
Já tinha trinta anos, o cabelo da cor da chuva e a pele imitava as rugas da terra. Devia ter juízo, mas não conseguia deixar de fitar o céu, em busca de uma impossível mancha azul. Olhou novamente para os seus clientes e viu o pai do rapaz a limpar-lhe os óculos, tirando-lhe a mascarra  cinzenta da frente da visão. Sorriu e suspirou.

Carvão?

Sentou-se. Estava farto das aulas. Há semanas que andavam a estudar as características do carvão. Ele queria lá saber quais eram as propriedades químicas de uma coisa que já ninguém usava... No dia anterior, tinham falado de fogueiras, do seu poder calorífico. Alguém mencionara um avô que fora escuteiro e que relembrava com saudade os tempos passados à volta da fogueira. A professora também lhes falara da sua mãe. Parece que adorara, em criança, os serões em torno da lareira. Para ele, aquilo eram só palermices de velhos. Quem lhe tirava a sua casa com aquecimento central, tirava-lhe tudo.

Naquele dia, a professora falou-lhes de uns tais lápis de carvão. Coisa estranha. Nunca ouvira falar deles. Em voz demasiado alta, perguntou à mulher:

- Lápis de carvão? Isso era o quê? Um objecto qualquer que servia para aquecer?

A professora ignorou-o. Já estava habituado. Talvez nem o tivesse ouvido. Não compreendia quem se lembrara de criar turmas. Pela Net seria tudo muito mais fácil. Por qualquer razão, naquela aula estava a ter dificuldades em aceder-lhe. Levantou o computador minúsculo para ver se descobria a causa do problema.

Foi então que a viu. Era cinzenta e tinha uma forma estranha. Tocou-lhe levemente e também a ponta do seu dedo se tornou cinzenta. Assustou-se. Seria algum tipo de veneno? Há meses que se falava da guerra biológica. Estaria irremediavelmente infectado? Gritou. Fez-se silêncio. A professora aproximou-se, mas não demasiado. Não podia correr riscos. Ele apontou primeiro para aquilo e depois para o seu dedo. Ela afastou-se. Era necessário ter cuidado com produtos químicos desconhecidos. Num instante, ligou para o Centro de Luta contra o Terror Bacteriológico e evacuou a sala. Ele ficou lá sozinho, a braços com um ataque de pânico que o mataria. No computador agora virado para a janela, um senhor de muita idade explicava o que era uma mascarra, ao mesmo tempo que apontava para a mancha de carvão que alguém deixara na madeira envelhecida.

Menina mariposa

No metro enlatado um homem prosseguia caminho para o seu posto de trabalho, em Alvalade.
Ele gostava de dizer que edificava lares, mas oficialmente era só mais um desprestigiado construtor civil.
Apertado entre a multidão de sardinhas, lá fazia por sair da carruagem quando chegava à sua estação. Com dificuldade, por entre empurrões, aproximava o seu passe do leitor electrónico que automaticamente lhe abria as portas a um mundo exterior mais arejado.
Já fora do pesadelo enlatado regozijava-se ao contemplar uma paisagem empresarial, construída durante gerações pela sua família. Era a única motivação de que precisava para ir fazer argamassa o dia todo e aguentar com o habitual mau feitio do chefe. Mas naquele dia algo lhe desestabilizou a alma. Algo harmonioso como uma mariposa. Tinha o seu metro e oitenta, a contar com os saltos pretos parcialmente escondidos por umas calças de trabalho de escritório. Tinha cabelos ruivos e um olhar meigo na cara.
- Que dia tão bonito! - disse-lhe ela da paragem do autocarro.
- O primeiro de Primavera! - respondeu-lhe o homem, chocado com a simpatia da menina mariposa.
Mas o que lhe viria a destruir a rotina de 10 anos de trabalhos forçados fora o momento após a chegada do autocarro 33. A menina despediu-se com um sorriso de criança, ingénuo, de puro contentamento. O homem estremeceu numa resposta sorridente acanhada e nervosa.
Os dias passaram-se e não havia um único em que não sorrissem um para o outro, sempre por volta das oito e meia da manhã. E o homem sentiu Amor pela primeira vez na sua vida.
O Verão estava a aproximar-se e com ele o calor, o que despoletava acessos de raiva no chefe. Certo dia, a meio do horário de expediente, meteu-se a praguejar.
- Não fazes nada de jeito! Vai limpar a cara seu porco! ... Este mês não recebes!
- Vá à merda! - respondeu-lhe o homem com uma postura digna e confiante. Sabia que já não precisava daquele trabalho e esta foi a desculpa perfeita para mudar de vida.
Sem se preocupar com a cara mascarrada ou as mãos enfarruscadas, fugiu da obra assim como estava. Esperou pelo autocarro 33 e saiu em todas as paragens procurando por escritórios e perguntando por uma "mulher ruiva, de metro e oitenta. Possivelmente escrituraria".
Desmotivado por não a ter encontrado seguiu até ao cais, na estação terminal do 33. E ali se deixou ficar, a observar o sol em sentido descendente, e a ouvir o cântico das gaivotas.
- Está todo porco! devia ir lavar a cara, se não as pessoas fogem de si.
Era a menina mariposa.
'Mãeeeeee!' Gritava em plenos pulmões orgulhosa do que acabara de desenhar. Tinha 5 anos e para mim aquela mascarra era a minha primeira obra. A minha mãe correu na minha direcção aflita pela urgência do chamamento. 'Céus.' O que ela viu ainda hoje não consegue descrever sem sorrir; uma garota toda mascarrada ostentando uma folha de papel com uma mancha e uma cauda e com um sorriso do tamanho do mundo. Adivinhou logo a minha tentativa de desenhar o Munfi, o nosso gato persa, gordo e bonacheirão que se arrastava de divisão em divisão à procura de mimos, mas que fugia cada vez que me via com medo de ser esmagado pelo meu afecto.

'Os teus olhos brilhavam com tal intensidade que eu senti que não podia deixar de me sentir tão feliz como tu naquele momento' contava-me ela ao adormecer-me sempre que eu pedia a história do desenho.

A partir daquele dia sempre que ia para o estúdio a minha mãe preparava a minha folha de papel e o meu pedaço de carvão. À medida que fui crescendo foi ensinando-me técnicas e dando-me a experimentar novos materiais. O Munfi continuou a ser o meu modelo favorito por isso compramos uma almofada de cetim vermelho mesmo à medida de sua realeza... Quando me fartei de desenhar o Munfi a minha mãe ajudou-me a arranjar novos objectos.

Um dia chegou ao pé de mim e com um sorriso disse 'hoje não há modelo'. Os meus olhos denunciaram o medo que senti nesse momento, será que os dias passados no estúdio tinham chegado ao fim? Em vez disso estendeu-me uma paleta e um pincel 'agora pinta'. E ainda sem perceber muito bem o que fazer fui pincelando a tela branca com cores vivas. No fim olhei e soltei uma gargalhada. Desenhara uma réplica daquela mascarra a que eu dera o titulo de 'Munfi'...