sexta-feira, 27 de agosto de 2010

- Wow, espectáculo! Mesmo fixe!
- Vês, filho? Olha bem para o centro do desenho. Agora vai aumentar. E daqui a nada diminuir. E depois aumentar outra vez.
- Já está! Olha, desce a olhos vistos!... E continua... Pai, não disseste que ia crescer outra vez?

Já não se lembrava da resposta que o pai lhe dera. Na verdade, quase não tinha memórias da sua vida anterior. Não voltara a ver os seus amigos, cujos nomes esquecera. Da família, recordava-se apenas do pai e apenas por esse nome. Com o tempo, habituara-se a chamar-se Filho. Também pouca diferença fazia. Ninguém falava a mesma língua naquela casa onde pareciam ter sido guardados os últimos exemplares da espécie humana e quem precisa de nomes quando não existe comunicação?

Também perdera a noção do tempo. Olhar para as paredes imaculadamente caiadas de branco era como visualizar a sua própria mente. Aquela conversa, a última conversa, era a música que o mantinha vivo, tal como a amálgama de sons indecifráveis e mecânicos que todos os dias povoava a casa tornava mais fáceis os seus dias intermináveis.

Perguntava-se se algum deles saberia dizer o nome daqueles desenhos na sua língua materna. O Pai, disso lembrava-se, chamara-lhes centros de pressão atmosférica. Uns eram os centros de alta pressão e outros de baixa pressão. No computador, ele via como ela, a pressão, aumentava no centro de uns e diminuía no centro de outros. Ao pé deles, aquele instrumento. O instrumento que sentenciara o fim da vida que conhecera até então: o barógrafo. Lá estava ele, o registo mais baixo de sempre, o Apocalipse. E a casa branca, cheia de gente desconhecida. A sua nova vida. Totalmente desprovida de significado, a não ser por aquela última conversa. Da sua vida anterior. O momento passado que explicava o futuro.

Sem se aperceber, reflectia em voz alta. Na sala que desconhecia, os mais recentes descendentes dos macacos sentiram o seu recém-criado mundo desmoronar-se. Ali estava a ameaça de que o profeta falara. Havia que tomar medidas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Shame on me, só vim hoje aqui.

Mas gostei muito deste texto! Dá nos informação mas não muita e cria uma sensação de familiaridade mas ao mesmo tempo estranheza.
Fez-me lembrar um filme chamado "The Road". Se puderem vejam.