sábado, 14 de agosto de 2010

Menina mariposa

No metro enlatado um homem prosseguia caminho para o seu posto de trabalho, em Alvalade.
Ele gostava de dizer que edificava lares, mas oficialmente era só mais um desprestigiado construtor civil.
Apertado entre a multidão de sardinhas, lá fazia por sair da carruagem quando chegava à sua estação. Com dificuldade, por entre empurrões, aproximava o seu passe do leitor electrónico que automaticamente lhe abria as portas a um mundo exterior mais arejado.
Já fora do pesadelo enlatado regozijava-se ao contemplar uma paisagem empresarial, construída durante gerações pela sua família. Era a única motivação de que precisava para ir fazer argamassa o dia todo e aguentar com o habitual mau feitio do chefe. Mas naquele dia algo lhe desestabilizou a alma. Algo harmonioso como uma mariposa. Tinha o seu metro e oitenta, a contar com os saltos pretos parcialmente escondidos por umas calças de trabalho de escritório. Tinha cabelos ruivos e um olhar meigo na cara.
- Que dia tão bonito! - disse-lhe ela da paragem do autocarro.
- O primeiro de Primavera! - respondeu-lhe o homem, chocado com a simpatia da menina mariposa.
Mas o que lhe viria a destruir a rotina de 10 anos de trabalhos forçados fora o momento após a chegada do autocarro 33. A menina despediu-se com um sorriso de criança, ingénuo, de puro contentamento. O homem estremeceu numa resposta sorridente acanhada e nervosa.
Os dias passaram-se e não havia um único em que não sorrissem um para o outro, sempre por volta das oito e meia da manhã. E o homem sentiu Amor pela primeira vez na sua vida.
O Verão estava a aproximar-se e com ele o calor, o que despoletava acessos de raiva no chefe. Certo dia, a meio do horário de expediente, meteu-se a praguejar.
- Não fazes nada de jeito! Vai limpar a cara seu porco! ... Este mês não recebes!
- Vá à merda! - respondeu-lhe o homem com uma postura digna e confiante. Sabia que já não precisava daquele trabalho e esta foi a desculpa perfeita para mudar de vida.
Sem se preocupar com a cara mascarrada ou as mãos enfarruscadas, fugiu da obra assim como estava. Esperou pelo autocarro 33 e saiu em todas as paragens procurando por escritórios e perguntando por uma "mulher ruiva, de metro e oitenta. Possivelmente escrituraria".
Desmotivado por não a ter encontrado seguiu até ao cais, na estação terminal do 33. E ali se deixou ficar, a observar o sol em sentido descendente, e a ouvir o cântico das gaivotas.
- Está todo porco! devia ir lavar a cara, se não as pessoas fogem de si.
Era a menina mariposa.

3 comentários:

Kath disse...

Gostei, Pho!
O final, ainda que previsível, está bem conseguido. :D

Inês disse...

Acho que é o ter de obedecer a uma palavra que denuncia o fim. Também gostei^^

André Pereira disse...

Acontece-me sempre isso, bro, sempre-
Mas a menina mariposa não mete conversa comigo!
Gostei.