terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Indicador Timbrado

Estava com saudades. Apaixonara-se na primeira vez que se tocaram. Fora uma sensação única... e inesquecível. Todas as suas entranhas ganharam uma nova côr, toda a sua pele experimentou uma nova textura. Ficara sem palavras. A vontade própria abandonara-o. Deixara-se guiar, sem saber o sofrimento que daí adviria. Pela primeira vez na vida, tivera de a partilhar. E conhecia-a há tão pouco tempo. Mesmo assim ainda fora capaz de aproveitar o que sobrara. Deixara-se acarinhar, deliciara-se.

Até o toalhete chegar e levar tudo. Tudo. Até à última pinta, fazendo-o pensar que tudo se fora, para sempre. Sofreu durante dias. Talvez semanas. Ou até anos. Foi difícil. Já perdera a esperança quando voltou a reencontrá-la. As emoções invadiram-no novo. Desta vez, sabia que não seria eterno. Mas esqueceu-se disso e aproveitou. Foram dos melhores minutos da sua vida. Até o toalhete voltar e arrancá-la de si outra vez. Voltou a sofrer, embora a esperança lhe tenha mantido o fogo aceso.

Houve uma terceira, quarta, quinta, sexta vez. Esta seria a sétima vez que se encontravam. Assim esperava, pelo menos. O topo do corpo que tocava com frequência falara num tal de CC que substituiria o BI. Tinha medo de que já não o mergulhassem na tinta. Muito medo. Como conseguiria viver sem aquelas deliciosas partículas negras que o papel sempre roubava?

Naquele dia, teve dificuldades em controlar-se. Era o dia do veredicto final. Iria ou não reencontrar, mais uma vez, o amor da sua vida? Chegado à secretária procurou o instrumento do costume. Não o encontrou. Começou a assustar-se. Algo estava errado. Em cima da mesa, estava o que nunca estivera. Algo que nunca vira. A senhora pegou nele e encostou ao que quer que aquilo fosse. Não sentiu nada de especial. A não ser dor. A partir daquele dia, não mais escorreu tinta pelos seus poros.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Quanto vale uma prata?

Estava a ponto de vender o seu bem mais precioso. Tinha 35 anos e há 30 que guardava as pratas dos chocolates. Naquela valiosa bola, feita de lixo, estavam impressos quilómetros e quilómetros de estradas, passeios, corredores. Impressões digitais seriam às centenas. Quantas vezes a comparara com as dos seus amigos? Quantas vezes a tinham pesado usando apenas as mãos? Nem sabia dizer.

Mas chegara a hora de se desfazer dela. Não tinha outra hipótese. As dívidas acumulavam-se, os preços aumentavam, o salário diminuía. Tinha mesmo de ser. Entrou na ourivesaria. Estava cheia de pessoas a tentarem vender o seu ouro. Nenhuma delas tinha uma bola de prata como a sua. Esperou pela sua vez.

Foi atendido quase uma hora depois. No balcão acumulavam-se quilates e quilates de ouro. A prata era inexistente. Mostrou a sua preciosidade ao dono da loja.

- Quanto me dá por esta bola de prata maciça?, perguntou, num misto já generalizado de esperança e desalento.

- Mas o senhor está a brincar comigo? Como se atreve a gozar com a cara das pessoas que passam dificuldades? Ponha-se na rua ou chamo a segurança! - ameaçou, com intenções de passar das palavras aos actos.

Saiu da ourivesaria, envergonhado. Aquele era o seu último recurso. Sentia que a lama que, até ali, apenas lhe chegava ao pescoço começava a invadir a boca e as narinas. Aquela era mesmo a sua última esperança. Durante horas calcorreou as ruas da cidade sem rumo.

Que iria fazer agora? Sentou-se no passeio, absorto nos pensamentos. Despertou para a realidade com uma pequena bola de prata a tocar-lhe nos pés. Pegou nela, com vontade de a destruir. Não passava de lixo. Apenas e só lixo. Para a sociedade não valia um cêntimo. Não foi capaz. Viu um pequeno vulto a correr em direcção a si.

- Senhor! Senhor! Obrigado! Muito obrigado! Estão aí todos os chocolates dos meus últimos 3 meses. Ainda agora comprei outro... Quero mostrar aos meus amigos como a minha bola é maior que a deles.

Os olhos brilhavam. O sorriso era puro. A alegria infantil. Pela primeira vez na vida, teve uma uma revelação - podia não ter dinheiro, a bola podia não valer nada para os outros, mas, para si, significava tudo.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

México


Tenho um amigo ex-presidiário chamado Fred. Foram seis anos que ele passou numa prisão do Colorado, por ter roubado um carro durante a sua 13ª primavera.

Um dia apanhei o autocarro para ir comprar Whisky a uma loja de conveniência da Baixa quando me cruzo com ele dentro do número 2. Vinha com um ar de turista maravilhado com o desconhecido que o rodeava, e o fato de macaco às riscas com um número nas costas denunciava a história recente dele.
Por mera casualidade acabei por me sentar a seu lado.

“ Macacos me mordam se aquela não é a barbearia do John! E as miúdas do Colorado continuam iguais, Yipii hiii eiii!”. Os seus olhos brilhavam de um contentamento infantil e puro.

“Procura não fazer mais nenhuma asneira se não da próxima vez que fores dentro é para sempre”, disse-lhe eu instintivamente.

“hahahaha, yipii hii eiii! O meu nome é Fred. Acredita que tenho um enorme prazer em conhecer-te. Há muito tempo que não falava com uma pessoa num autocarro!”. Depois lançou a mão direita na minha direcção para selar algum acordo de amizade. Os seus olhos já lacrimejavam de emoção. Não tive coragem de lhe dizer que não.

Momentos a seguir dava-me palmadas nas costas e fazia promessas de amizade eterna. Falava de como as alianças de camaradagem mantiveram vivos os soldados na primeira Grande Guerra e planeava uma ida ao México comigo.

“Olha, eu ia só à Baixa comprar uma garrafa de whisky. Se calhar não vais para esses lados. Adeus”, e levantei-me para me deixar ficar ao pé da porta, longe dos assentos.

“Disseste-me Tony não foi?”, gritava o meu recente amigo. “Tony eu vou contigo! Da ultima vez que passei por aqui a estrada nem estava alcatroada. E agora é a maravilha que se vê! Parece que os carros hoje em dia planam em vez de andarem hahahaha! Tony eu vou contigo, também queria comprar um maço de cigarros para matar as saudades”.

A pobre criança estava completamente desvairada no novo mundo que andava a descobrir. Que podia eu fazer?

Chegados à 7/11 ele meteu-se a ver os doces e eu fui directo à secção de bebidas. Saquei de um Jack daniel’s e dirigi-me para a caixa.

“Olha para isto tony! Olha-me para isto! Gomas em formato de nuvens hahahaha”.

Já me cansava tanta euforia.

“Calma ou assustas as pessoas!”

“A vida é maravilhosa Tony! Não fiques tão triste hahaha”. Nisto pega nos doces e num maço de cigarros e apressa-se atrás de mim para a rua sem pagar os produtos.

O responsável da loja veio atrás a correr com ameaças.

“Volte cá! Você não pode sair sem pagar o que leva aí!”

“Eu não tenho dinheiro amigo. Deixe lá, não é por isto que vai à falência hahaha”.

Os ânimos começavam a exaltar-se.

“Mas você está a gozar com a minha cara? Ou devolve o que leva aí ou chamo a polícia!”

“A bófia? Eu conheço bem a bófia não se preocupe com isso. Eu e eles já somos amigalhaços do peito hahaha”

Nisto acontece o que nunca devia ter acontecido. Empurrões, insultos, níveis de adrenalina a subir no sangue.

O Fred arrancou então uma cruz de prata que eu trazia ao pescoço e desferiu um golpe em cheio no peito do responsável da loja, em nome dos doces em forma de nuvem e de um maço de tabaco.

“Olha-me para este cepo Tony! Tu sabes que eu não tive a culpa!”

Eu fiquei sem palavras. Mudo e quedo como as paredes.

Com a cruz ensanguentada e as mãos trémulas veio-me dizer a sorrir. “Vou ali fazer uma ligação automática a um carro e vamos partir juntos para o México. Meu bom amigo não te preocupes, vamos ser unha com carne”.

Ele não me deixava fugir. Um louco selvagem com uma cruz perigosa na mão e o olhar demente fixado em mim. Para além do mais estava paralisado de medo, não conseguia cair em mim.

Hoje o ar está quente e muito húmido. As melgas esborracham-se contra o vidro com alguma frequência. De vez em quando tenho de accionar o limpa pára-brisas. Faltam cerca de 300 km’s para chegarmos à fronteira. Aprendi a gostar de comida picante.