quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Excelência Humana

Estavam organizados da esquerda para a direita, por ordem alfabética. O paradigma da sensibilidade, o paradigma da racionalidade, o paradigma disto, o paradigma daquilo. Paradigmas e mais paradigmas, exemplos e mais exemplo do ideal. Fora ela que os organizara. Não tinha sido tarefa fácil. Não porque houvesse muitos candidatos, mas sim porque nunca compreendera os critérios para aceder ao brasão da excelência humana.

Ainda se lembrava quando, há cerca de dois anos, entrevistara o agora paradigma da sensibilidade. Tinha sido uma conversa impossível. Ela falava do vento e ele chorava pelos ramos que balançavam. Ela falava do sol e ele chorava de alegria pelas peles bronzeadas segundos antes de desatar num pranto pelas peles escaldadas. Já para não falar de quando ela afugentara uma mosca com um simples abanar de mão e ele a acusou de ser uma assassina. Uma conversa que contada ninguém acreditaria e por isso fora gravada. Como todos os encontros entre ela e os candidatos. Afinal, no fim, era sempre a máquina quem ditava o vencedor e, naquele dia, ela comovera-se. Enquanto ela se entregava ao entorpecimento, tamanha a desilusão.

Aquilo não era, não podia ser, o paradigma da sensibilidade. Tal como o paradigma da racionalidade, outra conversa impossível, que às tantas já a fazia querer atirar um livro (volumoso) à cabeça do candidato. Viver com aquelas pessoas seria insuportável. Pelo menos se elas fossem assim na vida real, para lá da porta da sala de entrevistas. E talvez fosse isso que lhe fizesse mais confusão.

Aquelas personagens - para ela não eram mais do que isso - nunca era verificadas. A entrevista e a máquina eram soberanas, sem nunca lhe dar espaço para tentar atravessar a carapaça que todos tinham. Em tempos, vira aquela estrutura feita de comportamentos expectáveis como um ataque, mas agora percebia que não era mais do que uma defesa. Quem iria atacar o paradigma da sensibilidade, ficando a saber o que o realmente o atormentava? Quem iria atacar o paradigma da racionalidade, pondo a nu os sentimentos que tão bem escondia? Ninguém. Não tivessem também os paradigmas uma certa aura de santidade.

Voltou a olhar para o brasão da excelência humana que nunca incluiria o seu nome, idade e profissão, antes de fechar à chave a porta blindada. Havia que proteger aquela base de dados inigualável de todos aqueles que quisessem ser simplesmente humanos, sem serem excelentes. Aqueles que também tinham carapaça, claro, mas que não a pavoneavam. O professor de matemática que dificilmente dava um desconto aos seus alunos, mas que se derretia como se fosse um boneco de neve quando a filha o abraçava depois de errar uma conta de subtrair. A psicóloga que absorvia como se não houvesse amanhã os problemas dos seus clientes, mas que, ao lidar com a sua própria depressão, não soube procurar ajuda. O taxista que todos os dias indicava o caminho a autóctones e estrangeiros, mas que, quando precisou de encontrar o gato que fugira de casa, perdeu o norte na cidade que conhecia como a palma da mão.

É, era uma honra ser simplesmente humana, pensou, enquanto picava a cebola.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Cheira-me a carne podre

Cheira-me a carne podre já há um mês. A chinfrineira na rua não cessa, especialmente de dia. Dá-me a impressão que eles são cada vez mais, que nojo.
Estou a ficar sem comida em casa e a última forma de comunicação que me resta é a internet. Apesar disso os servidores de WOW têm estado em baixo com frequência e já ninguém actualiza os perfis do facebook (começou uma nova moda de que eu não esteja a par?). Só me vale o youtube e a música Disco - Os Jackson 5 é que sabiam divertir-se.
É meio da tarde e não tenho nada para fazer, mas não estou arrependido. A selvajaria que vai lá por fora relembra-me do porquê de ter decidido encarcerar-me em casa. Egoísmo, gente vil, falam demasiado e escutam pouco, para além disso chamaram-lhes iluministas, deve ter sido mais um da espécie com a motivação no sexo e o orgulho na conta bancária. Não, eu cá prefiro o mundo à minha maneira e a ser como alguém, prefiro ser como o pantufa, ingénuo e bucólico.
A vontade de o ter em mim é grande.
"Importas-te papá, mamã?". Abanei a cabeça de um e do outro em sinal afirmativo, como se fossem bonecos.
O meu mundo perfeito.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

João deitou para o lixo o que sobrara do jantar. Serguei entregou no ferro-velho as peças que restavam do carro que comprara há cerca de ano e meio. Kyle achou que a camisa que comprara na semana anterior já estava ruça e decidiu deixá-la à porta de casa, pronta a ser queimada.

Em Lisboa, José abriu o saco preto que alguém deixara na rua. Já tinha jantar. Em Moscovo, Iuri encontrou um pneu à porta da garagem por abrir. Já tinha uma peça nova para o seu carro de há vinte anos. Em Londres, Bruce aterrou em cima de um monte de seda. Já tinha traje de gala.

A campainha tocou. Primeiro em Moscovo, mais tarde em Londres e Lisboa. Em Russo, Inglês e Português ouviu-se a voz de Lavoisier: "Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se tranforma."

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

contigo

tornaste-me uma pessoa pior
ao dizeres, sem voz nem alma,
que morreria contigo.
tiraste-me as palavras a outros
e os actos de boa fé caíram na inutilidade,
pois de que serviriam,
se morreria contigo?
para que viveria o mundo pelas dores
se seguiria na sombra pelo sempre e pelo fim,
contigo?
a treva que verte pela noite embala-me o sono
e és tu que me cantas olvidos,
sou eu que os perco nos sonos.
e quando todas as noites findarem,
e quando meu tempo chegar,
ter-te-ei comigo, como hoje, sempre,
e morrerei contigo.
só.

domingo, 5 de junho de 2011

Acordou com o coração aos saltos. O despertador na mesinha-de-cabeceira marcava quatro e trinta da manhã. Virou-se para o outro lado. Pôs-se de bruços, de costas. Encolheu-se. Esticou-se e voltou a virar-se. Eram cinco da manhã quando decidiu levantar-se, maldizendo a sua sorte. Deitara-se já passava das duas e já não conseguia dormir. Sentou-se na cama durante mais alguns minutos.

Lavou a cara. Espreguiçou-se. Suspirou. Não sabia o que havia de vestir. Decidiu ir à janela ver como estava o tempo. Foi surpreendida pela claridade do nascer-do-sol. Estava fresco, mas o dia prometia ser quente. Não que tivesse estudado geografia ou meteorologia, mas a intuição assim lhe dizia. Estava prestes a virar costas à rua quando reparou nela.

Os seus passos apressados ecoavam no bairro ainda adormecido. Os saltos altos de que não podia abdicar roçavam secamente na calçada, anunciando a sua presença a quilómetros de distância. Ainda não eram cinco e meia da manhã. Era elegante. O fato executivo que vestia assentava-lhe na perfeição, mas faltava-lhe algo.

Eram cinco e meia da manhã. As olheiras faziam o papel de algodão branco e denunciavam as poucas horas de sono que tivera. Apesar disso, não parecia cansada, embora o seu rosto fosse carregado. Eram cinco e meia da manhã. Notava-se a tensão nos ombros. Foi então que ela se voltou na direcção da janela. Os seus olhos eram lindos. O olhar era tranquilo. Acolhedor. Triste.

Assustou-se quando a viu à janela, a mirá-la com tanta atenção. Eram cinco e meia da manhã. O bairro devia estar dormir. A camioneta vinha longe, muito longe, mas o barulho do motor já substituíra o cantar dos pássaros. Bocejou e fugiu para a paragem, os saltos altos berrando mais do que nunca.

Da janela da sua cozinha, ficou a vê-la partir. Quem seria ela? Para onde iria? Por que partiria tão cedo? Viveria sozinha? Acompanhada? Não sabia. Voltou para dentro. Para a cama. Eram nove e quarenta e cinco quando o despertou tocou. Acordou estremunhada, com o sonho inacabado.

Uma multidão povoava a sua mente. Não sabia os seus nomes nem de onde os conhecia. Não os conhecia, apercebeu-se. Partilhava o bairro, a cidade, com dezenas e dezenas de pessoas, mas nada sabia delas. Não sabia se dormiam bem, se dormiam mal. Se eram felizes ou infelizes. Não sabia nada de nada, a não ser que eram seus vizinhos e que todos os dias os via. Arranjou-se. Saiu de casa. Entrou no autocarro.

Disse bom dia, esperançada. Ninguém respondeu. Sentou-se, olhou pela janela. Enganara-se. Afinal, o dia prometia ser chuvoso.

sábado, 16 de abril de 2011

Pelasgo, eu?

Konstantin estava a brincar com um amigo quando encontrou a placa. Era pequena, muito pequena. Tinha a cor do barro, mas a criança sabia que não era esse o material. Não que soubesse qual era, mas tinha a certeza de que o pedaço decorado com inscrições rústicas não era de barro.

- Konstantin, que estás a fazer? - perguntou-lhe o seu amigo Georgios, - Que é isso que tens na mão?

- Não sei. Estava aqui no meio da terra, dei-lhe um pontapé sem querer. Tem umas coisas escritas, mas não sei em que língua.

- Deixa-me ver.

Konstantin entregou o objecto a Georgios, que olhou para ele atentamente. Os seus olhos irradiavam curiosidade, mas pairava neles, com cada vez mais força, algo de obscuro.

- Eu sei o que é isto! O meu avô tem várias placas parecidas com estas lá em casa. Diz que são do trisavô dele, que morreu há muito tempo. Mas ele não gosta muito de falar nisso...

- Porquê?

- Não sei muito bem. Acho que tem vergonha: uma vez, a minha avó acusou-o de vir de uma família de bárbaros. Parece que eram pelasgos e sabes como eles eram terríveis. Se não fôssemos nós, os Gregos, o Peloponeso ainda estava parado no tempo.

- Tens razão... Mas espera aí! Se ele descende de pelasgos e tu descendes dele, então também és um pelasgo. Mas tu não és mau... Eu gosto muito de brincar contigo... Não podes ser impuro!

Ficaram em silêncio durante largos minutos. Georgios estava confuso. Sabia que nenhum pelasgo prestava, e não achava que fosse uma criança má, mas sabia que Konstantin tinha razão. Se o seu trisavô fora um pelasgo, então ele também era.

- Konstantin, já não és meu amigo? Não vais brincar mais comigo? - perguntou, com os olhos marejados.

Não teve uma resposta imediata. O amigo também estava confuso. Afinal, ele era filho de um príncipe, não podia dar-se com um mero pelasgo. Mas gostava tanto de brincar com Georgios... Desde pequenos que todas as tardes brincavam juntos. Na escola eram inseparáveis. Ele era tão boa pessoa. Importaria assim tanto que ele fosse um pelasgo? Sabia que os pais nunca aceitariam que fossem amigos se soubessem a origem de Georgios. A resposta saiu-lhe de supetão:

- Claro que vou! Sou teu amigo! Este vai ser o nosso pequeno segredo. Ninguém tem de saber que descendes de pelasgos, ora essa. Somos os dois gregos e pronto! E somos amigos!

Georgios sorriu, irradiando alegria. Nunca duvidara do poder de uma amizade sincera.

terça-feira, 29 de março de 2011

Não somos mais que um estorvo
no caminho para a nossa felicidade.
Não somos mais que um estorvo
que nos bloqueia a vista e nos impede
de ter a percepção de um horizonte
que diante de nós se apresenta
Estorvos de nós mesmos, assim ficaremos
sem nunca alcançar o que de facto queremos.

terça-feira, 8 de março de 2011

Estorvo de Família

Mário estava farto. Sentia-se um estorvo na vida de toda a gente. Os pais, esses, há muito que o haviam abandonado. Quando eles se foram embora, os tios ainda o aceitaram durante uns tempos, mas não durou muito até que fosse parar a casa dos avós. Há dois meses o avô morrera e agora vivia só com a avó.

Não é que não gostasse dela. Afinal, ela fora o mais próximo de uma mãe que tivera, mesmo com a sua má-vontade. Mas os 80 anos estavam próximos e Mário apercebia-se de que já lhe custava tratar da roupa e do almoço. A morte do avô só piorara a situação. Se antes as gargalhadas do velho ainda a animavam, agora não havia qualquer vislumbre de um mero sorriso na sua face. E Mário achava que a culpa era sua.

Pouco contacto tivera com os avós antes de ter ido morar com eles, há cerca de dois anos. Na altura, tinha acabado de entrar para a escola e eles não tinham muita paciência para o acompanhar nos estudos. Com o tempo, habituara-se, mas agora, aos oito anos, estava por sua conta. A avó terminara a segunda classe com dificuldade e ele já estava no terceiro ano. Nunca sabia a quem pedir ajuda e, naquele dia, ela nem sequer lhe respondia quando chamava por ela.

Não queria chateá-la, mas estava mesmo com muita dificuldade em compreender aquele problema. Acabou por pegar no livro e ir à procura da avó. Encontrou-a no jardim em que passava grande parte do seu tempo, a conversar com uma mulher muito mais nova. A cara era-lhe vagamente familiar, mas não conseguia perceber de onde a conhecia. Já tinha decidido voltar para dentro quando ouviu o seu nome a sair da boca da avó. Não resistiu e ficou à escuta.

- Não, não o levas daqui! Julgas o quê, que uma criança é um brinquedo que se larga durante uns anos até apetecer voltar a pegar nele? O Mário é meu neto e não vou deixar que o leves. Posso estar velha, mas ainda estou muito capaz de tomar conta do meu próprio neto! Ora essa, não hei-de cometer os mesmos erros que cometi contigo.

- Mas...

- E nem te atrevas a insinuar que ele é um estorvo! Eu sei que não sou a melhor pessoa do mundo a mostrar as minhas emoções, mas adoro o meu neto e faria tudo por ele! Tudo, ouviste?

Mário não ouviu o resto da conversa. Pela primeira vez na vida, soube o que significava a palavra felicidade.

domingo, 6 de março de 2011

Dom Cucu

Sabes o que é intolerável? Ser preso sem ter culpa.
Hoje estou reduzido a um coto no braço direito. E se estou vivo foi porque a raiva que sentia assim o quis. Durante anos pensei que eles não me podiam fazer aquilo, até que chegou o dia em que decidi por cobro à morte lenta a que me obrigaram.
Sabes aquele cubículo cinzentão onde eu vivia? ... claro que sabes, a prisão estava cheia desses cubículos não estava? Espera não abras a boca, não precisas de me responder porque sei que a tua resposta sairá superficial a este ponto. A verdade é que viver num quadrado cinzento é bastante solitário. Tens de ficar louco e imaginar outros mundos se não estás feito, padeces por dentro.
Mas sabes onde falharam? nas paredes argilosas! poupavam nas paredes para encher esses belos bandulhos, imagino. E tornaste-te num magnífico cagamerdeiras que nem repara que vosso vassalo Dom Cucu, que agora se apresenta à majestade de surpresa, estava a desgastar o próprio punho para ir cavando a parede aos bocadinhos.
Não me faças essa cara, é o que ouviste: todos os dias, na fracção de parede oculta pela cama, esfregava ininterruptamente o dedo indicador até a unha cair e o osso ficar a descoberto. Depois foi a vez do polegar e no fim já era a mão toda. Nos momentos em que desmaiava sonhava com a tua morte. E quando estava acordado planeava-a.
Agora, como se costuma dizer, chegou o momento.
Ao meu querido amigo Senhor Chefe Prisional da Puta-que-te-Pariu e que ao Inferno te irá tomar, recebei de meu humilde coto a salvação com cheiro a pólvora que acalmará vosso pestilento cheiro.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O toque de midas (que título pretensioso)

Acordei às cinco e meia da manhã para ir correr. O frio dificultava-me a respiração: inspirar pela boca, expirar pelo nariz, inspirar pela boca, expirar pelo nariz, tal como o meu pai me tinha ensinado.

Fiquei cansado depressa e tive que parar. Aproveitei para esticar os braços, rodar a anca e coçar o rabo. Àquela hora dificilmente alguém estaria acordado para reparar em mim. Sentia-me um passarinho livre e de pingo no nariz.

Retornei a um ritmo incerto. Inspirar pela boca, expirar pelo nariz, inspirar pela boca, expirar pelo nariz. Parei uns trezentos metros mais à frente para atar melhor os ténis de corrida velhinhos do meu pai. É que os ténis precisavam MESMO de ser atados. Demorei o meu tempo, não fosse o diabo tecê-las. E depois voltei a rodar a anca. Tinham-se passado vinte minutos desde que saí de casa e eu tinha combinado comigo mesmo uma hora de corrida. E de volta à acção, prossegui devagarinho em passo de corrida. "Desta vez tenho de me aguentar mais tempo", e acenei que "sim" com a cabeça, ao jeito dos mais determinados e confiantes.

Desta vez comecei antes a contar os meus passos, talvez fosse uma melhor estratégia: um passo, dois passos, três passos. Aos 70 vi um rabo de cavalo a baloiçar ao sabor de passadas carismáticas e perfeitamente sincronizadas. Fiquei curioso, afinal qual é a probabilidade de só nós os dois, no total da toda a população do mundo, quebrarmos horas sagradas de sono para ir correr? Pensei que se fosse ignorado pelo menos ninguém o poderia testemunhar por isso aproximei-me dela e toquei-lhe com o indicador nas costas.

"Bom dia", disse-lhe eu tentando acelerar para o seu ritmo de corrida.
Ela ignorou-me
"Ahm ... eu ... moro ... aqui ao pé ... para os lados ... da igreja", atirei-lhe já a arfar.
"Okay", respondeu-me ela
"Sou o Dani ... prazer"

É incrível o que um gajo consegue fazer por uma rapariga bonita. Sentia o sangue em ebulição na minha cabeça, e o coração batia como louco, mas não desisti.

"Como te chamas?", "Que idade tens?", "Já corres há muito tempo?".

A minha saliva ficou espessa da falta de hidratação. As pernas fraquejaram e eu caí no chão que nem um calhau pesado.

Quando voltei a acordar estava a miúda do rabo de cavalo a tocar-me com o indicador, para testar os meu sinais vitais, talvez.

"Estás bem?"
"Sim ...", olhei para o relógio, já passava quase uma hora desde que saí de casa para a corrida. Tinha de regressar, tomar banho e ir trabalhar.
"Tenho de ir. Gostei de correr contigo". As palavras saíram-me sem significado nenhum, e ela não ficou minimamente sensibilizada como seria de esperar.
"Xau", disse-me, e cada um fez o seu caminho.

Saí do banho recuperado e fresco. Reforcei o meu pequeno almoço e fui para o terminal dos barcos.

Na fila para embarcar descobri-lhe o rabo de cavalo que sobressaia por cima das suas roupas de jovem adolescente, com uns ténis da Nike, casaco preto com capaz e uma camisola de malha com motivos florais.

Sorri-lhe, desta vez com um sorriso aberto e sentido. Ela retribuiu. Fiz a viagem toda a seu lado, sentados nos bancos. Agora com luz da manhã e com outra disposição descobri que ela tem sardas. Que miúda adorável.
Esticou as pernas, olhando pela janela. Falava como se estivesse só. "O mundo é este quarto, sabias?"
O sol começava a descer, deixando os telhados das casas e das árvores cobertos por uma folha de ouro.

"Isso não faz sentido..." murmurei, olhando também lá para fora. Havia tanto. Do frio que parecia crescer do quarto para as árvores despidas às lâmpadas apagadas que lembravam aquários opacos e mortos.

Ignorou-me, continuando. Podia estar a falar aos livros na estante apinhada ou às cortinas quedas. "Quando sais, o mundo segue-te. Quando saíres, o mundo continua a ser o quarto. Para mim. Para ti vão ser aqueles gatos no muro, ou o musgo no lancil. Vão ser as ruas por que passas e que depois deixas para trás."

"E tu?" perguntei, baixo, fitando a sua figura esguia recostada na cama e lançando sombras na penumbra. "Se eu sair, e se o mundo sair comigo, não deixas de fazer parte dele, ficando aqui?"

O seu sorriso era quase condescendente, ainda que não me olhasse. "Ah. Há algum problema nisso? Não é como sempre? Suponho que serei parcialmente real para ti enquanto pensares em mim, quando vires as minhas mensagens ou vires a minha voz ao telefone. Faz diferença? De resto, deixo de existir, tal como tu para mim."

"Mas..." Eu queria argumentar, mas a sua lógica era-me confusa e o meu olhar perdeu-se no dourado perdido e sombrio que agora pintava o exterior que, naquele momento, não era mundo.

Se fechasse os olhos... A escuridão do quarto não se equiparava à fusão de cores reformuladas atrás das minhas pálpebras. A sua voz estava lá também, melíflua. "Assim o mundo escoa-se. Parece tão mais pequeno e maior, não é? Não há barreiras de janelas, portas, paredes, chegas a todo o lado. Os indicadores do que está aqui, que não está quando fechas os olhos, desaparecem tão facilmente como magia. Talvez ela exista, afinal." O sorriso na sua voz era tão claro como se o visse, com aquele torcer leve do canto da boca.

Olhei novamente pela janela. Os aquários estavam acesos, aqueles que não estavam definitivamente mudos. Levantei-me; estava na hora de ir. Trocámos uma despedida breve e quase invisível, e saí com o mundo atrás. Na memória ficaram as palavras, indicador da sua presença que se manteve real até casa.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Indicador Timbrado

Estava com saudades. Apaixonara-se na primeira vez que se tocaram. Fora uma sensação única... e inesquecível. Todas as suas entranhas ganharam uma nova côr, toda a sua pele experimentou uma nova textura. Ficara sem palavras. A vontade própria abandonara-o. Deixara-se guiar, sem saber o sofrimento que daí adviria. Pela primeira vez na vida, tivera de a partilhar. E conhecia-a há tão pouco tempo. Mesmo assim ainda fora capaz de aproveitar o que sobrara. Deixara-se acarinhar, deliciara-se.

Até o toalhete chegar e levar tudo. Tudo. Até à última pinta, fazendo-o pensar que tudo se fora, para sempre. Sofreu durante dias. Talvez semanas. Ou até anos. Foi difícil. Já perdera a esperança quando voltou a reencontrá-la. As emoções invadiram-no novo. Desta vez, sabia que não seria eterno. Mas esqueceu-se disso e aproveitou. Foram dos melhores minutos da sua vida. Até o toalhete voltar e arrancá-la de si outra vez. Voltou a sofrer, embora a esperança lhe tenha mantido o fogo aceso.

Houve uma terceira, quarta, quinta, sexta vez. Esta seria a sétima vez que se encontravam. Assim esperava, pelo menos. O topo do corpo que tocava com frequência falara num tal de CC que substituiria o BI. Tinha medo de que já não o mergulhassem na tinta. Muito medo. Como conseguiria viver sem aquelas deliciosas partículas negras que o papel sempre roubava?

Naquele dia, teve dificuldades em controlar-se. Era o dia do veredicto final. Iria ou não reencontrar, mais uma vez, o amor da sua vida? Chegado à secretária procurou o instrumento do costume. Não o encontrou. Começou a assustar-se. Algo estava errado. Em cima da mesa, estava o que nunca estivera. Algo que nunca vira. A senhora pegou nele e encostou ao que quer que aquilo fosse. Não sentiu nada de especial. A não ser dor. A partir daquele dia, não mais escorreu tinta pelos seus poros.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Quanto vale uma prata?

Estava a ponto de vender o seu bem mais precioso. Tinha 35 anos e há 30 que guardava as pratas dos chocolates. Naquela valiosa bola, feita de lixo, estavam impressos quilómetros e quilómetros de estradas, passeios, corredores. Impressões digitais seriam às centenas. Quantas vezes a comparara com as dos seus amigos? Quantas vezes a tinham pesado usando apenas as mãos? Nem sabia dizer.

Mas chegara a hora de se desfazer dela. Não tinha outra hipótese. As dívidas acumulavam-se, os preços aumentavam, o salário diminuía. Tinha mesmo de ser. Entrou na ourivesaria. Estava cheia de pessoas a tentarem vender o seu ouro. Nenhuma delas tinha uma bola de prata como a sua. Esperou pela sua vez.

Foi atendido quase uma hora depois. No balcão acumulavam-se quilates e quilates de ouro. A prata era inexistente. Mostrou a sua preciosidade ao dono da loja.

- Quanto me dá por esta bola de prata maciça?, perguntou, num misto já generalizado de esperança e desalento.

- Mas o senhor está a brincar comigo? Como se atreve a gozar com a cara das pessoas que passam dificuldades? Ponha-se na rua ou chamo a segurança! - ameaçou, com intenções de passar das palavras aos actos.

Saiu da ourivesaria, envergonhado. Aquele era o seu último recurso. Sentia que a lama que, até ali, apenas lhe chegava ao pescoço começava a invadir a boca e as narinas. Aquela era mesmo a sua última esperança. Durante horas calcorreou as ruas da cidade sem rumo.

Que iria fazer agora? Sentou-se no passeio, absorto nos pensamentos. Despertou para a realidade com uma pequena bola de prata a tocar-lhe nos pés. Pegou nela, com vontade de a destruir. Não passava de lixo. Apenas e só lixo. Para a sociedade não valia um cêntimo. Não foi capaz. Viu um pequeno vulto a correr em direcção a si.

- Senhor! Senhor! Obrigado! Muito obrigado! Estão aí todos os chocolates dos meus últimos 3 meses. Ainda agora comprei outro... Quero mostrar aos meus amigos como a minha bola é maior que a deles.

Os olhos brilhavam. O sorriso era puro. A alegria infantil. Pela primeira vez na vida, teve uma uma revelação - podia não ter dinheiro, a bola podia não valer nada para os outros, mas, para si, significava tudo.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

México


Tenho um amigo ex-presidiário chamado Fred. Foram seis anos que ele passou numa prisão do Colorado, por ter roubado um carro durante a sua 13ª primavera.

Um dia apanhei o autocarro para ir comprar Whisky a uma loja de conveniência da Baixa quando me cruzo com ele dentro do número 2. Vinha com um ar de turista maravilhado com o desconhecido que o rodeava, e o fato de macaco às riscas com um número nas costas denunciava a história recente dele.
Por mera casualidade acabei por me sentar a seu lado.

“ Macacos me mordam se aquela não é a barbearia do John! E as miúdas do Colorado continuam iguais, Yipii hiii eiii!”. Os seus olhos brilhavam de um contentamento infantil e puro.

“Procura não fazer mais nenhuma asneira se não da próxima vez que fores dentro é para sempre”, disse-lhe eu instintivamente.

“hahahaha, yipii hii eiii! O meu nome é Fred. Acredita que tenho um enorme prazer em conhecer-te. Há muito tempo que não falava com uma pessoa num autocarro!”. Depois lançou a mão direita na minha direcção para selar algum acordo de amizade. Os seus olhos já lacrimejavam de emoção. Não tive coragem de lhe dizer que não.

Momentos a seguir dava-me palmadas nas costas e fazia promessas de amizade eterna. Falava de como as alianças de camaradagem mantiveram vivos os soldados na primeira Grande Guerra e planeava uma ida ao México comigo.

“Olha, eu ia só à Baixa comprar uma garrafa de whisky. Se calhar não vais para esses lados. Adeus”, e levantei-me para me deixar ficar ao pé da porta, longe dos assentos.

“Disseste-me Tony não foi?”, gritava o meu recente amigo. “Tony eu vou contigo! Da ultima vez que passei por aqui a estrada nem estava alcatroada. E agora é a maravilha que se vê! Parece que os carros hoje em dia planam em vez de andarem hahahaha! Tony eu vou contigo, também queria comprar um maço de cigarros para matar as saudades”.

A pobre criança estava completamente desvairada no novo mundo que andava a descobrir. Que podia eu fazer?

Chegados à 7/11 ele meteu-se a ver os doces e eu fui directo à secção de bebidas. Saquei de um Jack daniel’s e dirigi-me para a caixa.

“Olha para isto tony! Olha-me para isto! Gomas em formato de nuvens hahahaha”.

Já me cansava tanta euforia.

“Calma ou assustas as pessoas!”

“A vida é maravilhosa Tony! Não fiques tão triste hahaha”. Nisto pega nos doces e num maço de cigarros e apressa-se atrás de mim para a rua sem pagar os produtos.

O responsável da loja veio atrás a correr com ameaças.

“Volte cá! Você não pode sair sem pagar o que leva aí!”

“Eu não tenho dinheiro amigo. Deixe lá, não é por isto que vai à falência hahaha”.

Os ânimos começavam a exaltar-se.

“Mas você está a gozar com a minha cara? Ou devolve o que leva aí ou chamo a polícia!”

“A bófia? Eu conheço bem a bófia não se preocupe com isso. Eu e eles já somos amigalhaços do peito hahaha”

Nisto acontece o que nunca devia ter acontecido. Empurrões, insultos, níveis de adrenalina a subir no sangue.

O Fred arrancou então uma cruz de prata que eu trazia ao pescoço e desferiu um golpe em cheio no peito do responsável da loja, em nome dos doces em forma de nuvem e de um maço de tabaco.

“Olha-me para este cepo Tony! Tu sabes que eu não tive a culpa!”

Eu fiquei sem palavras. Mudo e quedo como as paredes.

Com a cruz ensanguentada e as mãos trémulas veio-me dizer a sorrir. “Vou ali fazer uma ligação automática a um carro e vamos partir juntos para o México. Meu bom amigo não te preocupes, vamos ser unha com carne”.

Ele não me deixava fugir. Um louco selvagem com uma cruz perigosa na mão e o olhar demente fixado em mim. Para além do mais estava paralisado de medo, não conseguia cair em mim.

Hoje o ar está quente e muito húmido. As melgas esborracham-se contra o vidro com alguma frequência. De vez em quando tenho de accionar o limpa pára-brisas. Faltam cerca de 300 km’s para chegarmos à fronteira. Aprendi a gostar de comida picante.