quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Excelência Humana

Estavam organizados da esquerda para a direita, por ordem alfabética. O paradigma da sensibilidade, o paradigma da racionalidade, o paradigma disto, o paradigma daquilo. Paradigmas e mais paradigmas, exemplos e mais exemplo do ideal. Fora ela que os organizara. Não tinha sido tarefa fácil. Não porque houvesse muitos candidatos, mas sim porque nunca compreendera os critérios para aceder ao brasão da excelência humana.

Ainda se lembrava quando, há cerca de dois anos, entrevistara o agora paradigma da sensibilidade. Tinha sido uma conversa impossível. Ela falava do vento e ele chorava pelos ramos que balançavam. Ela falava do sol e ele chorava de alegria pelas peles bronzeadas segundos antes de desatar num pranto pelas peles escaldadas. Já para não falar de quando ela afugentara uma mosca com um simples abanar de mão e ele a acusou de ser uma assassina. Uma conversa que contada ninguém acreditaria e por isso fora gravada. Como todos os encontros entre ela e os candidatos. Afinal, no fim, era sempre a máquina quem ditava o vencedor e, naquele dia, ela comovera-se. Enquanto ela se entregava ao entorpecimento, tamanha a desilusão.

Aquilo não era, não podia ser, o paradigma da sensibilidade. Tal como o paradigma da racionalidade, outra conversa impossível, que às tantas já a fazia querer atirar um livro (volumoso) à cabeça do candidato. Viver com aquelas pessoas seria insuportável. Pelo menos se elas fossem assim na vida real, para lá da porta da sala de entrevistas. E talvez fosse isso que lhe fizesse mais confusão.

Aquelas personagens - para ela não eram mais do que isso - nunca era verificadas. A entrevista e a máquina eram soberanas, sem nunca lhe dar espaço para tentar atravessar a carapaça que todos tinham. Em tempos, vira aquela estrutura feita de comportamentos expectáveis como um ataque, mas agora percebia que não era mais do que uma defesa. Quem iria atacar o paradigma da sensibilidade, ficando a saber o que o realmente o atormentava? Quem iria atacar o paradigma da racionalidade, pondo a nu os sentimentos que tão bem escondia? Ninguém. Não tivessem também os paradigmas uma certa aura de santidade.

Voltou a olhar para o brasão da excelência humana que nunca incluiria o seu nome, idade e profissão, antes de fechar à chave a porta blindada. Havia que proteger aquela base de dados inigualável de todos aqueles que quisessem ser simplesmente humanos, sem serem excelentes. Aqueles que também tinham carapaça, claro, mas que não a pavoneavam. O professor de matemática que dificilmente dava um desconto aos seus alunos, mas que se derretia como se fosse um boneco de neve quando a filha o abraçava depois de errar uma conta de subtrair. A psicóloga que absorvia como se não houvesse amanhã os problemas dos seus clientes, mas que, ao lidar com a sua própria depressão, não soube procurar ajuda. O taxista que todos os dias indicava o caminho a autóctones e estrangeiros, mas que, quando precisou de encontrar o gato que fugira de casa, perdeu o norte na cidade que conhecia como a palma da mão.

É, era uma honra ser simplesmente humana, pensou, enquanto picava a cebola.

1 comentário:

Di disse...

és tão diferente. és tão especial! <3