quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

México


Tenho um amigo ex-presidiário chamado Fred. Foram seis anos que ele passou numa prisão do Colorado, por ter roubado um carro durante a sua 13ª primavera.

Um dia apanhei o autocarro para ir comprar Whisky a uma loja de conveniência da Baixa quando me cruzo com ele dentro do número 2. Vinha com um ar de turista maravilhado com o desconhecido que o rodeava, e o fato de macaco às riscas com um número nas costas denunciava a história recente dele.
Por mera casualidade acabei por me sentar a seu lado.

“ Macacos me mordam se aquela não é a barbearia do John! E as miúdas do Colorado continuam iguais, Yipii hiii eiii!”. Os seus olhos brilhavam de um contentamento infantil e puro.

“Procura não fazer mais nenhuma asneira se não da próxima vez que fores dentro é para sempre”, disse-lhe eu instintivamente.

“hahahaha, yipii hii eiii! O meu nome é Fred. Acredita que tenho um enorme prazer em conhecer-te. Há muito tempo que não falava com uma pessoa num autocarro!”. Depois lançou a mão direita na minha direcção para selar algum acordo de amizade. Os seus olhos já lacrimejavam de emoção. Não tive coragem de lhe dizer que não.

Momentos a seguir dava-me palmadas nas costas e fazia promessas de amizade eterna. Falava de como as alianças de camaradagem mantiveram vivos os soldados na primeira Grande Guerra e planeava uma ida ao México comigo.

“Olha, eu ia só à Baixa comprar uma garrafa de whisky. Se calhar não vais para esses lados. Adeus”, e levantei-me para me deixar ficar ao pé da porta, longe dos assentos.

“Disseste-me Tony não foi?”, gritava o meu recente amigo. “Tony eu vou contigo! Da ultima vez que passei por aqui a estrada nem estava alcatroada. E agora é a maravilha que se vê! Parece que os carros hoje em dia planam em vez de andarem hahahaha! Tony eu vou contigo, também queria comprar um maço de cigarros para matar as saudades”.

A pobre criança estava completamente desvairada no novo mundo que andava a descobrir. Que podia eu fazer?

Chegados à 7/11 ele meteu-se a ver os doces e eu fui directo à secção de bebidas. Saquei de um Jack daniel’s e dirigi-me para a caixa.

“Olha para isto tony! Olha-me para isto! Gomas em formato de nuvens hahahaha”.

Já me cansava tanta euforia.

“Calma ou assustas as pessoas!”

“A vida é maravilhosa Tony! Não fiques tão triste hahaha”. Nisto pega nos doces e num maço de cigarros e apressa-se atrás de mim para a rua sem pagar os produtos.

O responsável da loja veio atrás a correr com ameaças.

“Volte cá! Você não pode sair sem pagar o que leva aí!”

“Eu não tenho dinheiro amigo. Deixe lá, não é por isto que vai à falência hahaha”.

Os ânimos começavam a exaltar-se.

“Mas você está a gozar com a minha cara? Ou devolve o que leva aí ou chamo a polícia!”

“A bófia? Eu conheço bem a bófia não se preocupe com isso. Eu e eles já somos amigalhaços do peito hahaha”

Nisto acontece o que nunca devia ter acontecido. Empurrões, insultos, níveis de adrenalina a subir no sangue.

O Fred arrancou então uma cruz de prata que eu trazia ao pescoço e desferiu um golpe em cheio no peito do responsável da loja, em nome dos doces em forma de nuvem e de um maço de tabaco.

“Olha-me para este cepo Tony! Tu sabes que eu não tive a culpa!”

Eu fiquei sem palavras. Mudo e quedo como as paredes.

Com a cruz ensanguentada e as mãos trémulas veio-me dizer a sorrir. “Vou ali fazer uma ligação automática a um carro e vamos partir juntos para o México. Meu bom amigo não te preocupes, vamos ser unha com carne”.

Ele não me deixava fugir. Um louco selvagem com uma cruz perigosa na mão e o olhar demente fixado em mim. Para além do mais estava paralisado de medo, não conseguia cair em mim.

Hoje o ar está quente e muito húmido. As melgas esborracham-se contra o vidro com alguma frequência. De vez em quando tenho de accionar o limpa pára-brisas. Faltam cerca de 300 km’s para chegarmos à fronteira. Aprendi a gostar de comida picante.

4 comentários:

André Pereira disse...

Ora, isto sim, dava uma boa peça ou curta :O
Bravo, Mamede, bravo!

Inês disse...

Gostei, Pho, um final inesperado, uma contradição perfeita entre a alegria infantil e a tragédia fatal. E, sem ter lido o On the Road, diria que se faz notar a influência do livro ^^

Alpista descendente disse...

Foi completamente inspirado no on the road nini :)

Anónimo disse...

Muito fixe Pho, a história desenvolve-se mesmo bem.