terça-feira, 17 de agosto de 2010

O Cego Ideal

- Reinserção! Reinserção! Reinserção! - gritavam eles, em plena Avenida. Há anos que o faziam, tantos quantos os que ele os ouvia. Gostaria de poder dizer que os via, mas ver era para ele tarefa impossível.
Nascera cego e cego se mantivera. A idade apagara-a o tempo e a sociedade era para ele um mundo exterior. Nunca se inserira nela e, talvez por isso, nunca comprendera o significado da palavra que os outros berravam. Como falar de reinserção sem inserção? E como falar de inserção sem exclusão?
Exclusão. Isso ele sabia bem o que era, não fosse ela a sua vida. Uma vida miserável, dizem todos. Todos menos ele. Fantástica, diz ele. Sim, fantástica. Até mais do que fantástica. Ideal. Ideal vem de ideia, dizem os eruditos. E tantas ideias que ele tinha! Eram ideias atrás ideias, todos os dias, a todos os minutos. E ele via-as! Via-as tão bem como não via aqueles que todos os anos enchiam a Avenida. Esses que, ano após anos, gritavam "reinserção! reinserção! reinserção!". Quantos deles teriam realmente ideias?
Mas não se pense que ele não gostava deles. Ele gostava, oh, se gostava! Era o calor humano. Era a festa. Era a alegria. Era a humanidade. Sentia-se outro. Apetecia-lhe ser como eles. Queria ser como eles. Mas não podia. Afinal, reinserção implica sempre inserção. E inserção implica sempre exclusão. Exclusão. Vida ideal, de ideias. Mas de que servem as ideias quando não se tem afecto?

3 comentários:

Alpista descendente disse...

Muito interessante. Inclusão implica exclusão, ainda me lembro da professora Malafaia (terá sido ela?) falar disso.
Esta palavra vai ser um desafio para mim. Ainda estou à procura de alguma inspiração.

André Pereira disse...

Gostei, Mamede, tens de fazer melhor.
Um cego vê ideias e constrói o seu mundo e nele já pode falar de inserção?
Mas, enfim, está sozinho sem afecto.
Uma história que se explica a si mesma.

Anónimo disse...

Gostei Nini. Simples, mas acho que é um bom exemplo de texto "strain of thought". :)