quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O prazer dos peixes

Para um jovem habituado a uma vida à beira mar, aquela montanha branca afigurou-se um desafio maior do que esperava.
Dava pela alcunha de Sardinha Júnior, o filho de uma família de pescadores. A pele era bronzeada, o cabelo dourado, e os músculos dos braços bem definidos. Até aos 18 anos não fez outra coisa a não ser remendar as redes de pesca, ocasionalmente rompidas ou enleadas, que o pai trazia para casa. No seu 18º aniversário, numa cerimónia dirigida pelo patriarca da casa, foi-lhe concedido um barco baptizado com o nome da sua futura esposa - Amélia -, e recebeu o aval da família para iniciar a sua carreira piscatória.
Não se podia dizer que fosse um mau pescador, todas as noites trazia pelo menos um robalo ou meia dúzia de taínhas para casa. A profissão ate lhe agradava bastante, principalmente de Verão quando o mar estava calmo e espécies migratórias juntavam-se às locais aumentando assim a apanha em alto mar. Era também nesta altura que trazia consigo a sua Amélia de carne e osso, para juntos fazerem amor até ao sol se pôr. Ali, no território dos peixes, não tinha de se preocupar com mirones ou com o barulho que faziam. Era só ele, ela e os peixes, numa harmonia e calmaria insolúveis. Os belos tempos que viriam, no entanto, a terminar.
Estes Verões acabaram e um Inverno em especial chegou.
Como era seu dever, o jovem adulto partiu de manhãzinha para mais um dia de pesca. O tempo estava cinzento daí que tivesse vindo prevenido com um corta-vento e um chapéu de plástico amarelo impermeável. Precauções ingénuas.
Por volta do meio-dia o mar ficou demasiado agitado até para para os peixes. A Amélia trairia o seu fiel navegador virando-se ao contrário e o Sardinha Júnior arriscara-se a abraçar o mar para nunca mais voltar.
Quis o destino que ele conseguisse agarrar-se a um pedaço de madeira para assim navegar ao rumo da  maré durante dois dias.
Acabou por dar com terra firme. Encontrou salva e comeu raízes de árvores, uma dádiva generosa da natureza que lhe permitiu aliviar a fome.
Não havia forma de voltar atrás e encarar aquele mar traiçoeiro mais uma vez. Tinha de continuar em frente! O que o esperava eram uns quilómetros de mato que precediam uma enorme montanha. Ele sabia que a tinha de escalar para tentar chegar a uma eventual povoação que pudesse estar do outro lado.
Escalou durante uma semana, apoiado pelas propriedades medicamentosas da salva junta com a carga nutritiva das raízes das árvores que havia guardado.
O que o viria trair fora a pressão atmosférica que certamente rebentaria com a escala de qualquer barógrafo.
Para um rapaz habituado a viver ao nível da água, subir aquele território de nenhures representava uma conquista que nenhum homem ou animal devia ser permitido alcançar.
Foi ali que compreendeu o que é ser-se asmático. A cada passo que dava respirava com mais dificuldade. Uma inspiração normal lá em baixo era o equivalente a três ou quatro ali em cima para manter os níveis de oxigénio normais.
Eventualmente acabou por desmaiar perto do cume, quando a pressão atmosférica desceu para níveis surreais. Não o fez, porém, sem antes pensar no Verão que chegaria dali a uns belos meses, e nos momentos de prazer de que já tinha saudades.

1 comentário:

Anónimo disse...

Gosto muito da escrita deste texto, Pho, está muito bonito. :)