segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Perspectiva

Fora depois de ver na televisão o Mar Adentro que tivera a ideia. Se o espanhol que só movia a boca tinha conseguido, ele também conseguia.
Não era paraplégico mas quase mais valia que fosse, não tinha muito mais controlo do seu corpo. Tudo lhe tremia, se bem que quase imperceptivelmente.Os músculos não respondiam às suas ordens, e a boca já não formava as palavras como devia de ser. Ao menos o espanhol podia falar e escrever. Mais ou menos.
Era impossível falar disso aos filhos, e o enfermeiro que o acompanhava todos os longos dias muito menos o ajudaria. A sua única esperança era se algum dos netos ficasse sozinho com ele, por momentos, enquanto os pais fossem atender algum telefonema ou buscar algum chá ou mistela para o "animar". Ele não gostava de chá e eles não se lembravam, mas custava demasiado lembrá-los disso. E assim acreditavam que o ajudavam, e ficavam com a consciência livre. Não seria ele a impedir isso. Portanto, restavam os netos.
Nas horas nocturnas que passava sozinho treinava os gestos e os sons mal-formados que poderiam fazer uma das crianças entender que o avô queria os comprimidos brancos que estavam na cómoda. Talvez da próxima vez fosse possível estar sozinho com eles, e fazer-se entender. Depois era só uma questão de conseguir levar os comprimidos à boca. Ou a boca aos comprimidos, conforme fosse mais fácil.
Não gostava de pensar que as crianças pensassem que tivessem tido alguma culpa, mas acreditava que os filhos seriam capazes de impedir isso de acontecer. Era o avô que era velhinho e doente. Tinha chegado a hora dele.
E tinha. Mas mais ninguém parecia aperceber-se disso. Portanto ele estava reduzido a pensar, somente a pensar, num corpo que já não funcionava. Devia ter tido a coragem de fazer alguma coisa quando ainda conseguia andar, mas agora não havia nada a fazer. Nada a não ser tentar chegar aos comprimidos que lhe trariam a paz. A paz que ninguém parecia ter a caridade de lhe dar.

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