quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Sua...

Que chatice! Era sempre a mesma coisa... os carros estacionados em segunda fila que não davam espaço ao autocarro para passar. A pessoa que decidira dar àquela rua o nome de Rua da Beneficência de certeza que não conduzia ou andava de autocarro. Era todos os dias a mesma coisa! Será que ninguém percebia que a rua tinha de estar desimpedida para ele conseguir passar?

Todos os dias ouvia os seus clientes reclamarem. Eles percebiam, claro, que os carros não podiam estar ali estacionados. Os condutores dos carros é que não. Já estava farto de buzinar e o dono daquele carro nunca mais aparecia. Não iria conseguir cumprir o horário. E depois ele que não descansasse e que ouvisse os clientes. Claro, ele é que tinha de levar com tudo. E com um ordenado de miséria. E o raio do homem que nunca mais aparecia! Ou então era uma mulher. Se fosse, explicava tudo. Já não bastava acharem que tinham capacidade para conduzir, ainda tinham de atrapalhar a vida das pessoas que trabalham a sério...

Há já cinco minutos que apitava e foi então que ela apareceu. Era bonita. Muito bonita, mesmo. Cabelo arruivado, olhos esverdeados, extremamente bronzeada. Tinha um pequeno corte no lábio. Vinha a falar ao telemóvel. Olha a lata dela! Agora é que ela ia ver! Desceu do autocarro, aquecido pelo aumento de fluxo sanguíneo. Sacana! Ali a gozar com a cara dele, como se nada fosse. Agora é que ela ia ver!

Arrancou-lhe o telemóvel da mão. Gritou com ela. Chamou-lhe nomes, indo atrás dela à medida que ela se afastava. Não tens vergonha? Já viste o que andas a fazer? Sua... Ai se eu fosse teu marido, nem sabes o que eu te fazia! Ai, não sabes não! Ela afastava-se. E ele perseguia-a. Ela encostou-se à fachada do prédio. Ela não parou. Agrediu-a. Uma chapada que reabriu o corte que tinha no lábio. Ela agachou-se. Ele insistiu. Sua... Um pontapé. Ela gemeu. Bateu outra vez, descontrolado.

Do outro lado da estrada, um homem de fato e gravata saiu do prédio. Dirigiu-se, calmamente, ao carro que estacionara em segunda fila. Sabia que ela não se atreveria a fugir. Ela queixava-se, mas, no fundo, gostava. Gostava quando o via assim, enraivecido. De certeza que a entusiasmava. Aquilo de ter conseguido um telemóvel para pedir ajuda era só teatro, já sabia.

Meteu-se no carro. Pediu desculpa ao condutor do autocarro, sem reparar que ele não estava lá. Do outro lado da estrada, passava-se qualquer coisa. Um multidão amontoava-se. Que raio se teria passado? Ouviu as ambulâncias, o carro da polícia, mas não ligou. Seguiu viagem. À noite, quando a penumbra cobrisse a Beneficência, havia outra lição a dar.

1 comentário:

Anónimo disse...

Bolas...está muito bem escrito. mas até mete impressão >.< (o que só mostra como está bem escrito porque influência o leitor)